A REVELAÇÃO
Maurício há dias, sentia-se inquieto; dormia mal, tinha pesadelos, por vezes acordava no meio da noite com a sensação de que algo ruim estava para acontecer. Nessas ocasiões sentava na cama, no escuro, tentava fazer um balanço de sua vida.
Atualmente trabalhava no melhor de sua área: prospecção em Mina carbonífera para avaliar seu potencial de exploração. A firma pagava bem, alojamentos confortáveis, comida excelente para as circunstâncias – o cozinheiro era um cearense metido a maitre – e até dava para “namorar umas meninas” na cidade próxima a Mina. Quando terminasse seu contrato, de três meses, voltaria para Porto Alegre, para o apartamento, a música, os poucos amigos e Laura. Ah! Laura, como sentia sua falta. O mal estar dos últimos dias teria algo a ver com Laura? Há tempos não se falavam, em parte pelas dificuldades de comunicação, mas, também, pelo seu jeito acomodado de ser. Era como se não precisasse dizer aos outros o quanto gostava deles, principalmente para a família, tão pequena, e Laura.
Finalmente chegou a ocasião de ir a Porto Alegre. Tinha de entregar uns papéis junto à Justiça Federal a fim de liberar a área onde se situava a Mina e aproveitaria para ver Laura. Não avisaria, seria uma surpresa! Pensando melhor agora, se dava conta: o surpreendido poderia ser ele; lá vinha de novo aquela espécie de premonição.
Como era costume quando retornava ao apartamento, a primeira coisa foi colocar sua amada 9ª Sinfonia na vitrola – assim mesmo referia-se a este ato tão trivial. Depois foi ver a correspondência, só então, ligaria para Laura. Surpreso, encontrou uma carta do pai. Ficou olhando o envelope por um longo momento, procurando adivinhar o conteúdo. Estranho receber carta do pai. Aquele homem, a quem tanto admirava, sempre tinha sido distante e ao mesmo tempo exigente. Pouco se falavam, e quando o faziam era de maneira um tanto formal e uma carta revelava intimidade. Diferente da relação com a mãe, amiga e confidente, apesar de sua dondoquice. Mas não dava para seguir com cogitações, tinha de abrir logo aquele envelope.
A carta estava escrita à mão, numa letra grande, mas um tanto trêmula:
Querido filho Maurício.
Fico imaginando tua surpresa ao receber carta minha. Nestes anos todos que estamos separados pela distância geográfica, nunca nos correspondemos. Sempre há uma primeira vez e, como tua mãe está muito “ocupada” com chás de caridade, quermesses... só me restas tu para desabafar. Estranho dizer isto: desabafar, sempre abafei meus sentimentos e nunca pude dizer o quanto te amava...
Maurício começa a ficar inquieto, aquela sensação ruim dos últimos dias volta com força. O que aquele homem, sempre tão distante, estava querendo dizer?
... estou agora, em tua presença, para falar de mim. Não sei bem por onde começar, se pela tristeza dos anos perdidos ou se pelo desgosto do tempo que me resta viver. Porque é triste viver em solidão, mesmo cercado de gente. Sempre soube, não poderia ser bom pai, pois como filho fui um desastre. Nasci na contramão da vida de meus pais. Fruto de uma “travessura” da juventude, numa época em que essas travessuras não eram toleradas como hoje, vim desunir mais o já precariamente unido. Cresci com a culpa, isso teve como conseqüência ser um tipo frio e distante. Tive mais dois irmãos e uma irmã, como bem sabes, mas muito cedo saí de casa para sentir-me um pouco melhor. Trabalhei, estudei, venci profissionalmente, mas nada disso derreteu o gelo de meu coração. Quando conheci tua mãe, pensei que seria feliz, alegre e “solto”. Aos poucos fui me desiludindo ao me dar conta: ela também tinha dificuldades para se soltar. Formamos uma bela dupla de “trancados”. Tivemos sucesso profissional e social, mas escassa cumplicidade. Depois, nasceste e tive ciúmes. Para ti ela dava todo o afeto negado a mim. Fui me afastando, cumprindo formalmente meu papel de pai e marido e sendo, cada vez mais, um ser solitário. Agora estou aqui, com minha solidão, meus medos, minhas dificuldades, tentando te dizer o quanto preciso de alguém para me escutar e consolar.
Começava a ficar claro para Maurício: algo grave havia acontecido. Uma briga com sua mãe, separação? Doença! E essa palavra estourou em sua mente. Respirou fundo para se encher de coragem e seguir na leitura.
Ultimamente como vinha me sentindo mais desanimado, e triste, sem prazer em nada, um colega sugeriu que procurasse o Dr. Filipe Velásquez, clínico espanhol radicado aqui no Rio, há alguns anos. A princípio achei bobagem, aliás, como sempre faço quando alguém recomenda algo, mas como o mal-estar não passava, fui. Gostei do médico. Atencioso sem ser meloso, foi me examinando e, aos poucos, mostrando o que encontrava. Aparentemente não era grave, mas seriam necessários alguns exames; sugeria a internação por um par de dias para uma espécie de chek-up. Concordei, fizesse o necessário, imediatamente estranhei minha “entrega”. Tua mãe foi chamada, fomos para a Clínica Botafogo, fiquei realmente dois dias lá, onde me “viraram do avesso” e agora aqui estou, diante de ti, para dizer o que mais temia: tenho câncer!
Maurício sente as pernas afrouxarem, falta-lhe o ar, a mente turbilhona como se os pensamentos não coubessem dentro da cabeça. Tem vontade de chorar.
Câncer no fígado! Logo eu que nunca bebi mais de uma ou duas taças de vinho em algum jantar sofisticado. Mas câncer, esta palavra tão terrível, pode ser como “um raio em céu sereno”: aparecer quando menos se espera. Tua mãe está inconsolável e vai precisar muito tempo para se recuperar. Será por algum sentimento em relação a mim, ou porque vai atrapalhar a atividade social dela? (estou sendo sarcástico, mas é difícil mudar numa hora dessas). Bem filho, é isto! Enquanto escrevia cheguei a duvidar se mandaria mesmo esta carta, mas se não for agora, se não me mostrar, talvez nunca venhas a saber, o quanto gosto e preciso de ti. Recebe pois, um beijo saudoso do pai e amigo,
Antônio.
Maurício dobra a carta e só consegue pensar em Laura.
Nei Guimarães Machado
Oficina de Criação Literária – 2003.
Maurício há dias, sentia-se inquieto; dormia mal, tinha pesadelos, por vezes acordava no meio da noite com a sensação de que algo ruim estava para acontecer. Nessas ocasiões sentava na cama, no escuro, tentava fazer um balanço de sua vida.
Atualmente trabalhava no melhor de sua área: prospecção em Mina carbonífera para avaliar seu potencial de exploração. A firma pagava bem, alojamentos confortáveis, comida excelente para as circunstâncias – o cozinheiro era um cearense metido a maitre – e até dava para “namorar umas meninas” na cidade próxima a Mina. Quando terminasse seu contrato, de três meses, voltaria para Porto Alegre, para o apartamento, a música, os poucos amigos e Laura. Ah! Laura, como sentia sua falta. O mal estar dos últimos dias teria algo a ver com Laura? Há tempos não se falavam, em parte pelas dificuldades de comunicação, mas, também, pelo seu jeito acomodado de ser. Era como se não precisasse dizer aos outros o quanto gostava deles, principalmente para a família, tão pequena, e Laura.
Finalmente chegou a ocasião de ir a Porto Alegre. Tinha de entregar uns papéis junto à Justiça Federal a fim de liberar a área onde se situava a Mina e aproveitaria para ver Laura. Não avisaria, seria uma surpresa! Pensando melhor agora, se dava conta: o surpreendido poderia ser ele; lá vinha de novo aquela espécie de premonição.
Como era costume quando retornava ao apartamento, a primeira coisa foi colocar sua amada 9ª Sinfonia na vitrola – assim mesmo referia-se a este ato tão trivial. Depois foi ver a correspondência, só então, ligaria para Laura. Surpreso, encontrou uma carta do pai. Ficou olhando o envelope por um longo momento, procurando adivinhar o conteúdo. Estranho receber carta do pai. Aquele homem, a quem tanto admirava, sempre tinha sido distante e ao mesmo tempo exigente. Pouco se falavam, e quando o faziam era de maneira um tanto formal e uma carta revelava intimidade. Diferente da relação com a mãe, amiga e confidente, apesar de sua dondoquice. Mas não dava para seguir com cogitações, tinha de abrir logo aquele envelope.
A carta estava escrita à mão, numa letra grande, mas um tanto trêmula:
Querido filho Maurício.
Fico imaginando tua surpresa ao receber carta minha. Nestes anos todos que estamos separados pela distância geográfica, nunca nos correspondemos. Sempre há uma primeira vez e, como tua mãe está muito “ocupada” com chás de caridade, quermesses... só me restas tu para desabafar. Estranho dizer isto: desabafar, sempre abafei meus sentimentos e nunca pude dizer o quanto te amava...
Maurício começa a ficar inquieto, aquela sensação ruim dos últimos dias volta com força. O que aquele homem, sempre tão distante, estava querendo dizer?
... estou agora, em tua presença, para falar de mim. Não sei bem por onde começar, se pela tristeza dos anos perdidos ou se pelo desgosto do tempo que me resta viver. Porque é triste viver em solidão, mesmo cercado de gente. Sempre soube, não poderia ser bom pai, pois como filho fui um desastre. Nasci na contramão da vida de meus pais. Fruto de uma “travessura” da juventude, numa época em que essas travessuras não eram toleradas como hoje, vim desunir mais o já precariamente unido. Cresci com a culpa, isso teve como conseqüência ser um tipo frio e distante. Tive mais dois irmãos e uma irmã, como bem sabes, mas muito cedo saí de casa para sentir-me um pouco melhor. Trabalhei, estudei, venci profissionalmente, mas nada disso derreteu o gelo de meu coração. Quando conheci tua mãe, pensei que seria feliz, alegre e “solto”. Aos poucos fui me desiludindo ao me dar conta: ela também tinha dificuldades para se soltar. Formamos uma bela dupla de “trancados”. Tivemos sucesso profissional e social, mas escassa cumplicidade. Depois, nasceste e tive ciúmes. Para ti ela dava todo o afeto negado a mim. Fui me afastando, cumprindo formalmente meu papel de pai e marido e sendo, cada vez mais, um ser solitário. Agora estou aqui, com minha solidão, meus medos, minhas dificuldades, tentando te dizer o quanto preciso de alguém para me escutar e consolar.
Começava a ficar claro para Maurício: algo grave havia acontecido. Uma briga com sua mãe, separação? Doença! E essa palavra estourou em sua mente. Respirou fundo para se encher de coragem e seguir na leitura.
Ultimamente como vinha me sentindo mais desanimado, e triste, sem prazer em nada, um colega sugeriu que procurasse o Dr. Filipe Velásquez, clínico espanhol radicado aqui no Rio, há alguns anos. A princípio achei bobagem, aliás, como sempre faço quando alguém recomenda algo, mas como o mal-estar não passava, fui. Gostei do médico. Atencioso sem ser meloso, foi me examinando e, aos poucos, mostrando o que encontrava. Aparentemente não era grave, mas seriam necessários alguns exames; sugeria a internação por um par de dias para uma espécie de chek-up. Concordei, fizesse o necessário, imediatamente estranhei minha “entrega”. Tua mãe foi chamada, fomos para a Clínica Botafogo, fiquei realmente dois dias lá, onde me “viraram do avesso” e agora aqui estou, diante de ti, para dizer o que mais temia: tenho câncer!
Maurício sente as pernas afrouxarem, falta-lhe o ar, a mente turbilhona como se os pensamentos não coubessem dentro da cabeça. Tem vontade de chorar.
Câncer no fígado! Logo eu que nunca bebi mais de uma ou duas taças de vinho em algum jantar sofisticado. Mas câncer, esta palavra tão terrível, pode ser como “um raio em céu sereno”: aparecer quando menos se espera. Tua mãe está inconsolável e vai precisar muito tempo para se recuperar. Será por algum sentimento em relação a mim, ou porque vai atrapalhar a atividade social dela? (estou sendo sarcástico, mas é difícil mudar numa hora dessas). Bem filho, é isto! Enquanto escrevia cheguei a duvidar se mandaria mesmo esta carta, mas se não for agora, se não me mostrar, talvez nunca venhas a saber, o quanto gosto e preciso de ti. Recebe pois, um beijo saudoso do pai e amigo,
Antônio.
Maurício dobra a carta e só consegue pensar em Laura.
Nei Guimarães Machado
Oficina de Criação Literária – 2003.
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