ASPECTOS PSICODINÂMICOS DA RELAÇÃO MÉDICO-PACIENTE*
Prof. Dr. Nei Guimarães Machado**
“O bom médico trata não somente a enfermidade, como, também, ao indivíduo que tem a enfermidade. Para isto, escreve uma história de sentimentos e eventos, examina as emoções do mesmo modo que os sinais físicos e prescreve para conduzir o paciente à paz espiritual do mesmo modo que à corporal. Sua arma terapêutica mais importante é sua própria personalidade e a emprega consciente, sábia e benevolamente com pleno conhecimento de suas próprias debilidades e fraquezas”.
Por trás do adulto, em todo paciente que busca um médico, existe uma criança assustada e com medo. A doença provoca uma regressão à idade infantil, tornando o paciente necessitado de atenção, carinho, proteção e dependente do médico, que passa a ser visto revestido de atributos superiores, assumindo a função de um pai.
Daí a importância do primeiro contato. Uma aproximação completamente impessoal não é possível em medicina, já que médico e paciente reagem um frente ao outro como pessoas, independentemente que o desejem ou não. Assim, já que os fatores subjetivos não se podem eliminar, deverão ser reconhecidos e entendidos, pois suas potencialidades terapêuticas serão aproveitadas para benefício do paciente. Esta é uma maneira de dizer que a relação médico-paciente desempenha um papel definitivo e às vezes crucial no resultado de um programa terapêutico.
Estará o médico psicologicamente preparado para esta função? Para responder a esta pergunta devemos fazer antes uma outra indagação: por que estudamos medicina?
Ao nível consciente a resposta é quase sempre desejo de servir, de ser útil, busca de prestígio ou de auto-realização, imitação, idealismo, etc. Para os psicanalistas entretanto, a profissão médica tem outras motivações inconscientes. Estes motivos se acham, freqüentemente, relacionados a fatores emocionais desenvolvidos durante a infância. A história do desenvolvimento de cada indivíduo, desde a infância até a maturidade, é uma luta constante entre os impulsos negativos (destrutivos) e os positivos (construtivos). Algumas pessoas temem intensamente que seus impulsos agressivos primitivos possam tomar conta dos demais aspectos de sua personalidade. Para enfrentar esta ansiedade, o indivíduo pode empreender uma carreira “curativa” e “reparativa” para assegurar-se a si mesmo que é capaz de emendar e reunir o que está roto ou “enfermo”. A necessidade emocional de combater as enfermidades pode ser bem uma ajuda ou um obstáculo para o exercício equilibrado, efetivo e maduro da profissão médica.
Tradicionalmente o estudante de medicina não tem sido orientado nesse sentido; o espaço que as escolas médicas dão em seu currículo ao estudo da Psicologia Médica e suas implicações com as demais especialidades médicas ainda, a meu ver, é muito pequeno.
O médico precisa saber, em primeiro lugar, que irá lidar com os mais diversos tipos de doentes.
As doenças podem ter origem em alterações orgânicas, em lesões anatômicas, como ocorre na inflamação, nos tumores, ou serem simplesmente expressão de um distúrbio funcional resultante de uma situação de ansiedade, de medo, de conflitos interiores.
A esses últimos, nos quais nada encontramos com os recursos da semiologia, rotulamos de neuróticos ou, simplesmente, no jargão médico, de “psíquicos”. Esses pacientes, que somam 1/3 do total, são, de modo geral, os que mais sofrem, porque o médico, comumente, falta-lhes com o apoio de que necessitam. São considerados impertinentes, indesejáveis e, em geral, perambulam pelos consultórios, exibindo coleção de exames e um rosário de queixas.
Ocorre ainda que as doenças orgânicas, de qualquer natureza, acarretam perturbações emocionais importantes no paciente e os distúrbios funcionais, por sua vez, podem levar a uma doença no sentido organicista da palavra, como ocorre na hipertensão arterial, úlcera duodenal, etc. Existe, portanto, uma inter-relação entre “soma” e “psique”, não se podendo, a rigor, dissociar as duas coisas.
Infelizmente a medicina sempre se preocupou quase que exclusivamente com o corpo, sobretudo após o advento da patologia celular de Virchow e a descoberta dos micróbios por Pasteur.
É a concepção organicista das doenças que prevalece até os nossos dias. “... pois este é o grande erro de nossos dias...”, dizia Platão, há mais de dois mil anos, “... os médicos separarem o corpo do espírito...”.
Incontestavelmente, foi a partir do advento da psicanálise que se iniciou o processo de esclarecimento do sentido dos sintomas de conversão, fundamentando-se na observação clínica rigorosa, que consistia numa anamnese detalhada e um método novo de pesquisa das motivações ocultas da doença. Essas investigações conduziram a conclusões básicas. Entretanto, a partir desse ponto inicial, durante aproximadamente quarenta anos, pode-se estimar esse período entre 1900 e 1940, a bifurcação da evolução das ciências médicas foi notória. Contudo, tanto no plano somático como no psíquico, o progresso que a pesquisa realizou nesses anos foi algo espantoso, como todos sabem. Ao mesmo tempo, porém, os instintos destrutivos dissociaram esforços, opondo-se à objetivação, na prática profissional, da síntese psicossomática. De uma maneira ridícula, os profissionais de um setor e de outro ainda às vezes se olham de esguelha, como adversários competidores. Essa é uma lamentável constatação à qual não podemos fugir, a não ser apelando para um mecanismo de negação da realidade médica. Mas em contraposição a esses aspectos depreciativos da dignidade das ciências médicas, de aproximadamente trinta anos para cá, vem sendo intenso o trabalho de construção de uma nova imagem do médico e da medicina, de molde a servir de guia da investigação e da prática profissional.
Logicamente, foram os conhecimentos advindos do setor psicanalítico acerca dos mecanismos psíquicos inconscientes que contribuíram para esclarecer muitos problemas da patologia, considerados antes como propriedade da órbita orgânica. Por sua vez, os psicanalistas não se julgam donos desses conhecimentos; quiçá possa estar surgindo agora uma disposição interna para que todos os médicos se valham desses recursos, na prática diária, para tornar menos tenso o desempenho profissional e proporcionar ao paciente mais chance de ser compreendido.
Superando o suposto vale conceitual entre o orgânico e a mente, a medicina deixou de ver em cada paciente não apenas um órgão ou uma função a investigar, mas uma pessoa a examinar e a tratar. Quando tal não acontece numa consulta médica, desconfiamos da capacidade do profissional.
O defrontar-se do médico com seu paciente, desde que o encare como gente e não como coisa, é o momento em que uma ação humana adquire sua mais alta dignidade. Se quisermos preservar a nobreza da medicina como profissão se impõe nossa reação contra a coisificação do paciente. Não só o médico, mas o paciente deverá sair também enobrecido duma consulta, além de aliviado, o que não costuma acontecer quando a relação médico-paciente está poluída, como na quase generalidade dos dias de hoje.
A doença causa, em geral, aos que cuidam do doente, especificamente ao médico, repugnância ou angústia, ou esses dois sentimentos entrelaçados. Contra eles devemos estar prevenidos, sob pena de perturbarmos a objetividade da nossa ação. Da parte do paciente igualmente ocorrem sentimentos positivos ou negativos, isto é, de extrema simpatia e inteira aceitação em relação ao médico, ou, pelo contrário, de rechaço.
Em qualquer especialidade médica esses sentimentos, puros ou mesclados, estarão sempre presentes, tanto no paciente como no médico, sem que nem um nem o outro tenha consciência da sua fonte. Naturalmente, em todas as demais relações humanas ocorre algo parecido, porém na relação médico-paciente isso é evidenciado com maior nitidez. Por que isso ocorre? Porque, como dissemos no início, a personalidade de todo paciente diante de um médico passa a funcionar num nível regressivo, por força de sua condição de paciente. Regredindo, pois, a um tipo de relacionamento infantil, principalmente com o médico que o trata, o doente transfere para este a sua maneira (seu modelo) de relacionar-se que outrora tivera com os objetos parentais. Por sua vez, o médico também está sujeito à idêntica regressão. Daí a importância de estar alerta a respeito dessa possibilidade, se possível tratado, o que lhe evitará desgastes emocionais desnecessários no seu trabalho diário.
Como se sabe, foi a Psicanálise que pôs em destaque a existência de tais pólos afetivos. Freud chamou a esses sentimentos transferência, a emoção que experimenta o paciente em relação ao médico e contratransferência o que sente o médico em relação ao paciente.
A investigação em torno desse jogo de afetos é de extrema importância em psicanálise, a ponto de se dizer que a psicanálise consiste na análise da transferência, sendo a contratransferência o roteiro seguro que leva o psicanalista às interpretações mais acertadas.
Nas demais especialidades médicas a situação é bem diferente. Mas de onde vem essa diferença? Do fato de que a relação médico-paciente não é tratada, é vivenciada. Os analistas a vivenciam e tratam, isto é, a analisam. Isto significa que investigam a sua origem, seguem a sua evolução, aprecia a sua forma e indagam da sua finalidade. E a contratransferência do analista está sujeita a um controle racional com base no tratamento analítico a que previamente se submeteu. Bem, isto também pode ser feito pelos demais médicos, basta que estejam familiarizados com as manifestações do inconsciente, o que só é possível quando vivenciou essas situações subjetivas na análise pessoal. Só o conhecimento teórico não basta. Do contrário, afora uma compreensão superficial mais ou menos polida, mais ou menos social, será difícil e fatigante manter o relacionamento com o paciente, durante um tempo prolongado, num plano racional adaptado. As consultas espaçadas, como costuma acontecer fora dos campos da psiquiatria e da psicanálise, constituem uma forma não intencional de profilaxia desses possíveis desentendimentos.
Evidentemente, em face do seu paciente, o clínico deverá dirigir sua atenção, em primeiro lugar, para o ponto ou os pontos que ele lhe indicar. Assim como o psicanalista não deverá interferir com perguntas intempestivas, capazes de desviar o curso das associações que levariam ao núcleo do conflito, também o clínico, dentro dos limites de tempo e espaço de que dispõe, deverá permitir e de certa forma estimular o livre relato do paciente que, muitas vezes, durante toda a vida, jamais teve oportunidade de dizer a alguém compreensivo aquilo que realmente o preocupa em matéria de saúde. Se o médico, como dissemos antes, é pessoa dotada de certa intuição psicológica e com algum preparo em psicologia médica dinâmica, e, mais que isso, com experiência analítica como paciente, estará, então, mais capacitado para compreender as fantasias inconscientes dos pacientes e, conseqüentemente, poderá ajudá-los melhor.
Penso que, sem pelo menos algum conhecimento da teoria geral das neuroses, possa parecer difícil aceitar e compreender a existência desses processos inconscientes. Resumindo, direi que, desde os começos da psicanálise, Freud concebeu a idéia de que a doença mental se desencadeia e se mantém em razão da satisfação que ela dá ao indivíduo. O processo neurótico se desenvolve em conformidade com o princípio do prazer e tende a obter um benefício econômico, isto é, uma diminuição da tensão. Este benefício é posto em evidência pela resistência do indivíduo à cura, pondo em xeque o desejo consciente de curar-se. Por doloroso que seja, o sintoma neurótico tem como fim poupar o indivíduo de conflitos intrapsíquicos que considera mais penoso. Da mesma forma podemos ver, nos sintomas “orgânicos” as mesmas motivações inconscientes acima descritas. Em vista disso é que reforçamos o que dissemos antes, ou seja, de que o médico, para compreender na totalidade seu paciente e manter com ele uma comunicação estreita, no campo das relações médico-paciente, deverá estar familiarizado com os conhecimentos advindos da psicologia médica dinâmica.
A essa altura vocês estarão se perguntando o que tem a ver tudo isso com o simples ato de se sentar diante de um paciente e perguntar-lhe onde e desde quando sente a dor que o aborrece?
Tentarei responder dizendo que em todos os setores da medicina (e não apenas na Psiquiatria ou Psicanálise) o nosso interesse não pode visar tão somente o corpo em toda sua complexidade, não unicamente o passado biológico e mórbido do indivíduo, senão também o campo das suas relações familiares e sociais, pois assim procedendo poderemos integrar corpo e mente para uma compreensão mais completa daquele que nos procurou para que o ajudasse-mos, mas, também, o compreendesse-mos.
Certamente muitas dúvidas terei suscitado em vocês; se tal ocorreu terei alcançado o objetivo que me propus, pois as dúvidas são geradoras de hipóteses.
Muitas coisas mais poderiam ser ditas se não estivessem além do nosso alcance. Para terminar quero lhes dizer que o Médico só se torna digno deste nome quando atinge a plena maturidade. Nem todos conseguem. Como definiu Weissmann, “alcançar a maturidade não é envelhecer, é passar da arrogância para a humildade, da indiferença para o amor, da inveja para a gratidão, da insegurança para a tranqüilidade; é aumentar em si os impulsos construtivos, livrando-se dos impulsos destrutivos; é compreender em vez de julgar, e isto só se consegue pelo conhecimento cada vez mais profundo se si mesmo”.
* Palestra proferida para alunos do 1º Ano de Medicina da EMED-UCPEL, em abril de 1996.
** Professor Adjunto nas Escolas de Medicina e Psicologia da UCPEL.
Prof. Dr. Nei Guimarães Machado**
“O bom médico trata não somente a enfermidade, como, também, ao indivíduo que tem a enfermidade. Para isto, escreve uma história de sentimentos e eventos, examina as emoções do mesmo modo que os sinais físicos e prescreve para conduzir o paciente à paz espiritual do mesmo modo que à corporal. Sua arma terapêutica mais importante é sua própria personalidade e a emprega consciente, sábia e benevolamente com pleno conhecimento de suas próprias debilidades e fraquezas”.
Por trás do adulto, em todo paciente que busca um médico, existe uma criança assustada e com medo. A doença provoca uma regressão à idade infantil, tornando o paciente necessitado de atenção, carinho, proteção e dependente do médico, que passa a ser visto revestido de atributos superiores, assumindo a função de um pai.
Daí a importância do primeiro contato. Uma aproximação completamente impessoal não é possível em medicina, já que médico e paciente reagem um frente ao outro como pessoas, independentemente que o desejem ou não. Assim, já que os fatores subjetivos não se podem eliminar, deverão ser reconhecidos e entendidos, pois suas potencialidades terapêuticas serão aproveitadas para benefício do paciente. Esta é uma maneira de dizer que a relação médico-paciente desempenha um papel definitivo e às vezes crucial no resultado de um programa terapêutico.
Estará o médico psicologicamente preparado para esta função? Para responder a esta pergunta devemos fazer antes uma outra indagação: por que estudamos medicina?
Ao nível consciente a resposta é quase sempre desejo de servir, de ser útil, busca de prestígio ou de auto-realização, imitação, idealismo, etc. Para os psicanalistas entretanto, a profissão médica tem outras motivações inconscientes. Estes motivos se acham, freqüentemente, relacionados a fatores emocionais desenvolvidos durante a infância. A história do desenvolvimento de cada indivíduo, desde a infância até a maturidade, é uma luta constante entre os impulsos negativos (destrutivos) e os positivos (construtivos). Algumas pessoas temem intensamente que seus impulsos agressivos primitivos possam tomar conta dos demais aspectos de sua personalidade. Para enfrentar esta ansiedade, o indivíduo pode empreender uma carreira “curativa” e “reparativa” para assegurar-se a si mesmo que é capaz de emendar e reunir o que está roto ou “enfermo”. A necessidade emocional de combater as enfermidades pode ser bem uma ajuda ou um obstáculo para o exercício equilibrado, efetivo e maduro da profissão médica.
Tradicionalmente o estudante de medicina não tem sido orientado nesse sentido; o espaço que as escolas médicas dão em seu currículo ao estudo da Psicologia Médica e suas implicações com as demais especialidades médicas ainda, a meu ver, é muito pequeno.
O médico precisa saber, em primeiro lugar, que irá lidar com os mais diversos tipos de doentes.
As doenças podem ter origem em alterações orgânicas, em lesões anatômicas, como ocorre na inflamação, nos tumores, ou serem simplesmente expressão de um distúrbio funcional resultante de uma situação de ansiedade, de medo, de conflitos interiores.
A esses últimos, nos quais nada encontramos com os recursos da semiologia, rotulamos de neuróticos ou, simplesmente, no jargão médico, de “psíquicos”. Esses pacientes, que somam 1/3 do total, são, de modo geral, os que mais sofrem, porque o médico, comumente, falta-lhes com o apoio de que necessitam. São considerados impertinentes, indesejáveis e, em geral, perambulam pelos consultórios, exibindo coleção de exames e um rosário de queixas.
Ocorre ainda que as doenças orgânicas, de qualquer natureza, acarretam perturbações emocionais importantes no paciente e os distúrbios funcionais, por sua vez, podem levar a uma doença no sentido organicista da palavra, como ocorre na hipertensão arterial, úlcera duodenal, etc. Existe, portanto, uma inter-relação entre “soma” e “psique”, não se podendo, a rigor, dissociar as duas coisas.
Infelizmente a medicina sempre se preocupou quase que exclusivamente com o corpo, sobretudo após o advento da patologia celular de Virchow e a descoberta dos micróbios por Pasteur.
É a concepção organicista das doenças que prevalece até os nossos dias. “... pois este é o grande erro de nossos dias...”, dizia Platão, há mais de dois mil anos, “... os médicos separarem o corpo do espírito...”.
Incontestavelmente, foi a partir do advento da psicanálise que se iniciou o processo de esclarecimento do sentido dos sintomas de conversão, fundamentando-se na observação clínica rigorosa, que consistia numa anamnese detalhada e um método novo de pesquisa das motivações ocultas da doença. Essas investigações conduziram a conclusões básicas. Entretanto, a partir desse ponto inicial, durante aproximadamente quarenta anos, pode-se estimar esse período entre 1900 e 1940, a bifurcação da evolução das ciências médicas foi notória. Contudo, tanto no plano somático como no psíquico, o progresso que a pesquisa realizou nesses anos foi algo espantoso, como todos sabem. Ao mesmo tempo, porém, os instintos destrutivos dissociaram esforços, opondo-se à objetivação, na prática profissional, da síntese psicossomática. De uma maneira ridícula, os profissionais de um setor e de outro ainda às vezes se olham de esguelha, como adversários competidores. Essa é uma lamentável constatação à qual não podemos fugir, a não ser apelando para um mecanismo de negação da realidade médica. Mas em contraposição a esses aspectos depreciativos da dignidade das ciências médicas, de aproximadamente trinta anos para cá, vem sendo intenso o trabalho de construção de uma nova imagem do médico e da medicina, de molde a servir de guia da investigação e da prática profissional.
Logicamente, foram os conhecimentos advindos do setor psicanalítico acerca dos mecanismos psíquicos inconscientes que contribuíram para esclarecer muitos problemas da patologia, considerados antes como propriedade da órbita orgânica. Por sua vez, os psicanalistas não se julgam donos desses conhecimentos; quiçá possa estar surgindo agora uma disposição interna para que todos os médicos se valham desses recursos, na prática diária, para tornar menos tenso o desempenho profissional e proporcionar ao paciente mais chance de ser compreendido.
Superando o suposto vale conceitual entre o orgânico e a mente, a medicina deixou de ver em cada paciente não apenas um órgão ou uma função a investigar, mas uma pessoa a examinar e a tratar. Quando tal não acontece numa consulta médica, desconfiamos da capacidade do profissional.
O defrontar-se do médico com seu paciente, desde que o encare como gente e não como coisa, é o momento em que uma ação humana adquire sua mais alta dignidade. Se quisermos preservar a nobreza da medicina como profissão se impõe nossa reação contra a coisificação do paciente. Não só o médico, mas o paciente deverá sair também enobrecido duma consulta, além de aliviado, o que não costuma acontecer quando a relação médico-paciente está poluída, como na quase generalidade dos dias de hoje.
A doença causa, em geral, aos que cuidam do doente, especificamente ao médico, repugnância ou angústia, ou esses dois sentimentos entrelaçados. Contra eles devemos estar prevenidos, sob pena de perturbarmos a objetividade da nossa ação. Da parte do paciente igualmente ocorrem sentimentos positivos ou negativos, isto é, de extrema simpatia e inteira aceitação em relação ao médico, ou, pelo contrário, de rechaço.
Em qualquer especialidade médica esses sentimentos, puros ou mesclados, estarão sempre presentes, tanto no paciente como no médico, sem que nem um nem o outro tenha consciência da sua fonte. Naturalmente, em todas as demais relações humanas ocorre algo parecido, porém na relação médico-paciente isso é evidenciado com maior nitidez. Por que isso ocorre? Porque, como dissemos no início, a personalidade de todo paciente diante de um médico passa a funcionar num nível regressivo, por força de sua condição de paciente. Regredindo, pois, a um tipo de relacionamento infantil, principalmente com o médico que o trata, o doente transfere para este a sua maneira (seu modelo) de relacionar-se que outrora tivera com os objetos parentais. Por sua vez, o médico também está sujeito à idêntica regressão. Daí a importância de estar alerta a respeito dessa possibilidade, se possível tratado, o que lhe evitará desgastes emocionais desnecessários no seu trabalho diário.
Como se sabe, foi a Psicanálise que pôs em destaque a existência de tais pólos afetivos. Freud chamou a esses sentimentos transferência, a emoção que experimenta o paciente em relação ao médico e contratransferência o que sente o médico em relação ao paciente.
A investigação em torno desse jogo de afetos é de extrema importância em psicanálise, a ponto de se dizer que a psicanálise consiste na análise da transferência, sendo a contratransferência o roteiro seguro que leva o psicanalista às interpretações mais acertadas.
Nas demais especialidades médicas a situação é bem diferente. Mas de onde vem essa diferença? Do fato de que a relação médico-paciente não é tratada, é vivenciada. Os analistas a vivenciam e tratam, isto é, a analisam. Isto significa que investigam a sua origem, seguem a sua evolução, aprecia a sua forma e indagam da sua finalidade. E a contratransferência do analista está sujeita a um controle racional com base no tratamento analítico a que previamente se submeteu. Bem, isto também pode ser feito pelos demais médicos, basta que estejam familiarizados com as manifestações do inconsciente, o que só é possível quando vivenciou essas situações subjetivas na análise pessoal. Só o conhecimento teórico não basta. Do contrário, afora uma compreensão superficial mais ou menos polida, mais ou menos social, será difícil e fatigante manter o relacionamento com o paciente, durante um tempo prolongado, num plano racional adaptado. As consultas espaçadas, como costuma acontecer fora dos campos da psiquiatria e da psicanálise, constituem uma forma não intencional de profilaxia desses possíveis desentendimentos.
Evidentemente, em face do seu paciente, o clínico deverá dirigir sua atenção, em primeiro lugar, para o ponto ou os pontos que ele lhe indicar. Assim como o psicanalista não deverá interferir com perguntas intempestivas, capazes de desviar o curso das associações que levariam ao núcleo do conflito, também o clínico, dentro dos limites de tempo e espaço de que dispõe, deverá permitir e de certa forma estimular o livre relato do paciente que, muitas vezes, durante toda a vida, jamais teve oportunidade de dizer a alguém compreensivo aquilo que realmente o preocupa em matéria de saúde. Se o médico, como dissemos antes, é pessoa dotada de certa intuição psicológica e com algum preparo em psicologia médica dinâmica, e, mais que isso, com experiência analítica como paciente, estará, então, mais capacitado para compreender as fantasias inconscientes dos pacientes e, conseqüentemente, poderá ajudá-los melhor.
Penso que, sem pelo menos algum conhecimento da teoria geral das neuroses, possa parecer difícil aceitar e compreender a existência desses processos inconscientes. Resumindo, direi que, desde os começos da psicanálise, Freud concebeu a idéia de que a doença mental se desencadeia e se mantém em razão da satisfação que ela dá ao indivíduo. O processo neurótico se desenvolve em conformidade com o princípio do prazer e tende a obter um benefício econômico, isto é, uma diminuição da tensão. Este benefício é posto em evidência pela resistência do indivíduo à cura, pondo em xeque o desejo consciente de curar-se. Por doloroso que seja, o sintoma neurótico tem como fim poupar o indivíduo de conflitos intrapsíquicos que considera mais penoso. Da mesma forma podemos ver, nos sintomas “orgânicos” as mesmas motivações inconscientes acima descritas. Em vista disso é que reforçamos o que dissemos antes, ou seja, de que o médico, para compreender na totalidade seu paciente e manter com ele uma comunicação estreita, no campo das relações médico-paciente, deverá estar familiarizado com os conhecimentos advindos da psicologia médica dinâmica.
A essa altura vocês estarão se perguntando o que tem a ver tudo isso com o simples ato de se sentar diante de um paciente e perguntar-lhe onde e desde quando sente a dor que o aborrece?
Tentarei responder dizendo que em todos os setores da medicina (e não apenas na Psiquiatria ou Psicanálise) o nosso interesse não pode visar tão somente o corpo em toda sua complexidade, não unicamente o passado biológico e mórbido do indivíduo, senão também o campo das suas relações familiares e sociais, pois assim procedendo poderemos integrar corpo e mente para uma compreensão mais completa daquele que nos procurou para que o ajudasse-mos, mas, também, o compreendesse-mos.
Certamente muitas dúvidas terei suscitado em vocês; se tal ocorreu terei alcançado o objetivo que me propus, pois as dúvidas são geradoras de hipóteses.
Muitas coisas mais poderiam ser ditas se não estivessem além do nosso alcance. Para terminar quero lhes dizer que o Médico só se torna digno deste nome quando atinge a plena maturidade. Nem todos conseguem. Como definiu Weissmann, “alcançar a maturidade não é envelhecer, é passar da arrogância para a humildade, da indiferença para o amor, da inveja para a gratidão, da insegurança para a tranqüilidade; é aumentar em si os impulsos construtivos, livrando-se dos impulsos destrutivos; é compreender em vez de julgar, e isto só se consegue pelo conhecimento cada vez mais profundo se si mesmo”.
* Palestra proferida para alunos do 1º Ano de Medicina da EMED-UCPEL, em abril de 1996.
** Professor Adjunto nas Escolas de Medicina e Psicologia da UCPEL.
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