Monday, May 26, 2008

Comentário sobre o filme: “Amistad”.

Temática: corre o ano de 1839. Em um navio negreiro espanhol, La Amistad, que navega em direção a Cuba, dezenas de negros se amotinam e matam a maioria da tripulação. Obrigam dois sobreviventes a levá-los para a África, mas desconhecendo as rotas marítimas, são enganados e levados para a costa leste dos Estados Unidos. Presos, são acusados de assassinato, o que dá início a um longo e polêmico processo, que irá confrontar o norte abolicionista com o sul escravista. Prenúncio da Guerra da Secessão. Vemos, então, os interesses conflitantes entre a Coroa Espanhola, traficantes de escravos e comerciantes americanos reclamando a posse da “mercadoria humana”, numa batalha de tribunal onde a incompreensão humana, aliada à dificuldade de comunicação, mostra o quão frágil pode ser o ideal de liberdade.
Situação histórica: na passagem do século XVIII para o XIX, os Estados Unidos recém independentes formam uma pequena nação que se estende do Atlântico ao Mississipi.
Começa, então, o expansionismo para o Oeste, justificado pelo princípio do “Destino Manifesto”, que dizia serem os colonos americanos predestinados por Deus para conquistar os territórios entre o Atlântico e o Pacífico. A descoberta de ouro na Califórnia em 1848, aliada a uma vasta rede ferroviária iniciada em 1829, leva o expansionismo americano a construir cidades e ocupar territórios anteriormente pertencentes aos índios. Um verdadeiro genocídio físico e cultural dos nativos.
Cabe dizer, no entanto, que a diplomacia americana na primeira metade do século XIX foi bastante exitosa, conseguindo adquirir os territórios da Louisiana (da França), a Flórida (da Espanha), o Oregon (da Inglaterra) e o Alasca (da Rússia), após a Guerra da Secessão.
Em 1845 colonos norte-americanos proclamam a independência do Texas em relação ao México, o que leva a ex-colonia espanhola a perder os territórios do Novo México, Califórnia, Utah, Arizona, Nevada e parte do Colorado. Segue-se uma grande corrente migratória de europeus atraídos pela facilidade de adquirir terras. Isso torna mais flagrante o antagonismo entre o norte e o sul.
No norte o capital acumulado cria condições favoráveis ao desenvolvimento industrial. Já o sul, de clima quente e seco, permanece estagnado em uma economia agro-exportadora de algodão e tabaco, permanentemente necessitada de mão de obra escrava. A eleição, em 1860, de Abraham Lincoln, um abolicionista moderado, traz como resultado o separatismo sulista dando início, em 1861, a Guerra da Secessão (Guerra Civil dos Estados Unidos), que durou até 1865 e deixou cerca de 600 mil mortos.
O filme: drama dirigido com competência por Steven Spielberg, não teve a acolhida de público que merecia, talvez por tocar numa velha ferida americana (e, por que não, de todos nós): a escravidão humana e os conflitos étnicos surgidos deste problema. Situação que segue vigente, agora disfarçada na questão das cotas raciais.
Iluminação e fotografia (Janusz Kaminski) primorosas, reconstituição de época também (Rick Carter), traz desempenhos brilhantes. Destaque para Anthony Hopkins no papel do Ex-Presidente americano John Quincy Adams e Djimon Hounsou no papel de Cinque, o líder dos escravos. Gostei muito, também, de Matthew McConaughey no papel do advogado de defesa, cheio de manhas, mas, também, de incertezas.
Enfim, um belo filme, com sua mensagem vibrante de respeito à Liberdade e combate ao Preconceito (racial, social, político, etc.).

Nei Guimarães Machado. Oficina de Cinema – CETRES. Maio de 2008.

Saturday, May 24, 2008

Comentário sobre o filme: “Brutalidade”.

Clássico de “filmes de prisão”, segundo trabalho do já astro Burt Lancaster - havia estreado em 1946 no filme “Os Assassinos” -, mostra a realidade brutal e violenta de uma prisão dos anos 40, nos Estados Unidos.
Algo não muito diferente do que ocorre hoje nas prisões brasileiras!
Numa cela onde vivem seis homens (deveria ser para dois, apenas), liderados por um gangster de nome Joe Collins (Burt Lancaster), tramam um motim, e fuga, como meio de se rebelarem das atitudes sádicas e violentas do Capitão Munsey (Hume Cronyn), chefe da guarda da prisão. Paralelamente, as histórias de cada um são mostradas em flashback, onde se podem ver suas origens, motivações de estarem presos, amores que deixaram fora da cadeia, etc.
Este é o roteiro básico do filme, feito por Richard Brooks, baseado em um artigo de jornal.
Para ser levado às telas tiveram de haver longas negociações com a censura da época, pois mostrar a realidade violenta e brutal (cena de espancamento, p.ex.) era coisa proibida pelo famoso “Código H”.
O verdadeiro autor do filme é o produtor, antigo jornalista, Mark Hellinger, que brigava sempre por realismo em suas fitas.
Direção segura do norte americano Jules Dassin, que pouco depois seria banido de Hollywood pela cruzada anticomunista do Macarthismo, mostra o tom exato de desesperança, de um grupo de pessoas (delinqüentes) que vivem apinhadas em uma cela. A metáfora de abandono é vista através de um velho calendário com o rosto de uma moça que, sintomaticamente, parece estar morta. Mostra, ainda, o sadismo dos “agentes da lei”, através da figura do Capitão que espanca presos ao som de Wagner.
Por sinal este mesmo autor musical foi usado pelo nazismo de Hitler e pelos norte-americanos na guerra do Vietnam.
Tanto prisioneiros como alguns guardas seriam classificados como “psicopatas”.
O que significa isso? A psicopatia consiste num conjunto de comportamentos e traços de personalidade específicos. À primeira vista pessoas encantadoras (Dr. Hannibal Lecter, p.ex.), causam boa impressão e são tidas como “normais” pelos que as conhecem superficialmente. No entanto, com freqüência são egocêntricas, desonestas e indignas de confiança. Adotam comportamentos irresponsáveis sem razão aparente, exceto pelo fato de se divertirem com o sofrimento alheio (o Capitão dos guardas por um lado, mas alguns dos prisioneiros também). De um modo geral não sentem culpa e, nos relacionamentos amorosos são insensíveis e detestam compromisso. Usam maciçamente o mecanismo psicológico da projeção, culpando os outros, ou a sociedade, pelos seus deslizes. Não aprendem com seus erros e, também, não conseguem frear os impulsos mais primitivos (agressivos e sexuais).
Estudos americanos indicam que um terço dos indivíduos que estão nas prisões seriam psicopatas.
Surpreendentemente a grande maioria está fora das grades; muitos são bem sucedidos profissionalmente, ocupando lugar de destaque na política, nos negócios ou nas artes.
A maioria dos psicopatas são homens, mas ainda se desconhece os motivos para essa desproporção entre os sexos.
Alguns mitos sobre os psicopatas precisam ser desfeitos: nem todos são violentos, nem todos sofrem de psicoses e, finalmente, alguns são passíveis de tratamento. P.ex.: no seriado Família Soprano, Dra. Melfi, a psiquiatra que acompanha o mafioso Tony Soprano, encerra o tratamento psicoterápico porque um colega a convence de que o paciente era um psicopata clássico e, portanto, intratável. Diversos comportamentos de Tony, entretanto, como a lealdade à família e o apego emocional a um grupo de patos que ocuparam a sua piscina, tornam a decisão da terapeuta injustificável.
Como os bons vinhos, o filme envelheceu muito bem, pois segue atual, como um drama realista e perturbador, passados já 60 anos de sua realização.

Nei Guimarães Machado
“Oficina de Cinema” – CETRES
Abril de 2008.

Saturday, May 17, 2008

SIGMUND FREUD: ALGUNS ASPECTOS DA INFÂNCIA E ADOLESCÊNCIA.


A primavera, com seu sopro de renovação, rejuvenescia as colinas verdejantes que cercavam Freiberg, uma pequena cidade da Morávia, parte integrante do vasto império Austro-Húngaro.
Num final de tarde tranqüila do dia 06 de maio de 1856, Amalie Freud, uma jovem senhora de 20 anos, subitamente ficou pálida, começou a suar e, virando-se para seu marido, Herr Jakob Freud, disse:
- Está na hora.
Foi assim que nasceu um menino forte e saudável, cheio de cabelos negros e com a cabeça envolvida pela membrana amniótica, um sinal de bom augúrio, segundo um grupo de ciganos que acampavam perto daquela casinha situada na Rua Schlossergasse, nº. 117.
Recebeu do pai, o nome de Sigismundo, mais tarde mudado para Sigmund. Herr Jakob, então com 40 anos, já tinha dois filhos adultos, Emmanuel e Phillip, de um primeiro casamento. Muito orgulhoso, dizia aos vizinhos: - é parecido comigo e como nasceu com o “véu” vai ser um sujeito de grande sorte, um predestinado. Mal sabia Herr Jakob que assim seria!
O pai de Freud não teve tanta “sorte” assim, pois uma grande recessão, conseqüência de uma guerra desastrada entre Áustria e Itália, fez com que seus negócios do comércio de lãs fossem à ruína. Também o nacionalismo tcheco começava a se manifestar e sendo Herr Jakob um judeu-alemão, não era mais bem visto naquela pequena comunidade. Tiveram, então, de migrar. Inicialmente se instalaram por um breve tempo em Leipzig e, em seguida, se fixaram em Viena. Freud tinha, nessa ocasião, pouco mais de três anos. Os irmãos mais velhos foram para a Inglaterra onde, em Manchester, se tornaram prósperos tecelões.
Cresceu um menino quieto e sossegado, o preferido da mãe, que o chamava de “meu pretinho”. Anos mais tarde, já adulto e consagrado como Psicanalista, estudando o “complexo de inferioridade”, uma idéia de Adler que Freud contestava, disse: “... uma criança (ou adulto) sente-se inferior quando verifica que não é, ou não foi suficientemente amada...”. Ele, certamente, nunca se sentiu “inferior”, com baixa auto-estima como diríamos hoje, pois foi muito amado pelos pais e, mais tarde, pelos seus discípulos.
Em Viena, como filho mais velho, teve alguns “privilégios”: um quartinho só para ele, e livros. Herr Jacob, um autodidata, sempre estimulou Sigmund à leitura e, com grande sacrifício, conseguia comprar-lhe livros.
Neste quarto, que tanto significado teve em sua vida, Freud aprendeu a viver sozinho afastado do barulho das irmãs e dos inconvenientes da numerosa família.
No período que vai de 1895 a 1904, quando a ciência oficial de Viena lhe virou as costas, escrevendo para o amigo Fliess, chamou esta etapa de “esplendido isolamento”, uma referência, certamente, a seu quartinho da infância e adolescência.
O fato de o pai ter considerado-o diferente dos outros filhos, reforçou mais ainda sua autoconfiança fazendo com que se sentisse um predestinado. Um “general”, como seus ídolos Alexandre e Aníbal, que ainda iria ter grandes glórias.
Gostava de estudar e, especialmente, de aprender línguas. Orientado pelo pai começou a ler os clássicos alemães, Goethe em primeiro lugar, que foram decisivos em sua formação intelectual. Aos oito anos lia, também, Shakespeare e Dickens no original. Toda essa dedicação aos estudos e à leitura foi fundamental para sua aprovação no Sperl Gymnasium, o que ocorreu quando tinha nove anos, um ano a menos do que a idade normal para ingressar no ginásio.
Em junho de 1873 Sigmund Freud graduou-se com distinção summa cum laude, o que muito alegrou Herr Jakob, pois havia contraído muitas dívidas com diversas livrarias de Viena para beneficio daquele filho que tanto amava.
Indeciso quanto à carreira a seguir (ora pensava em Direito, ora em Medicina), viu-se inclinado à última após ler A Origem das Espécies, de Darwin, e ouvir uma conferência popular, pronunciada pelo Prof. Carl Brühl, que leu um ensaio de Goethe sobre a Natureza.
Sob o efeito dessas impressões, em outubro de 1873 matriculou-se na Universidade de Viena para o Curso de Medicina. Começava, então, a grande e brilhante carreira de Cientista, Médico e Psicólogo, que faria de Sigmund Freud, juntamente com Copérnico e Darwin, um dos três grandes homens que abalaram os alicerces da Humanidade.

Dr. Nei Guimarães Machado
Médico Psiquiatra.
Maio de 2006.
ASPECTOS PSICODINÂMICOS DA RELAÇÃO MÉDICO-PACIENTE*

Prof. Dr. Nei Guimarães Machado**


“O bom médico trata não somente a enfermidade, como, também, ao indivíduo que tem a enfermidade. Para isto, escreve uma história de sentimentos e eventos, examina as emoções do mesmo modo que os sinais físicos e prescreve para conduzir o paciente à paz espiritual do mesmo modo que à corporal. Sua arma terapêutica mais importante é sua própria personalidade e a emprega consciente, sábia e benevolamente com pleno conhecimento de suas próprias debilidades e fraquezas”.

Por trás do adulto, em todo paciente que busca um médico, existe uma criança assustada e com medo. A doença provoca uma regressão à idade infantil, tornando o paciente necessitado de atenção, carinho, proteção e dependente do médico, que passa a ser visto revestido de atributos superiores, assumindo a função de um pai.
Daí a importância do primeiro contato. Uma aproximação completamente impessoal não é possível em medicina, já que médico e paciente reagem um frente ao outro como pessoas, independentemente que o desejem ou não. Assim, já que os fatores subjetivos não se podem eliminar, deverão ser reconhecidos e entendidos, pois suas potencialidades terapêuticas serão aproveitadas para benefício do paciente. Esta é uma maneira de dizer que a relação médico-paciente desempenha um papel definitivo e às vezes crucial no resultado de um programa terapêutico.
Estará o médico psicologicamente preparado para esta função? Para responder a esta pergunta devemos fazer antes uma outra indagação: por que estudamos medicina?
Ao nível consciente a resposta é quase sempre desejo de servir, de ser útil, busca de prestígio ou de auto-realização, imitação, idealismo, etc. Para os psicanalistas entretanto, a profissão médica tem outras motivações inconscientes. Estes motivos se acham, freqüentemente, relacionados a fatores emocionais desenvolvidos durante a infância. A história do desenvolvimento de cada indivíduo, desde a infância até a maturidade, é uma luta constante entre os impulsos negativos (destrutivos) e os positivos (construtivos). Algumas pessoas temem intensamente que seus impulsos agressivos primitivos possam tomar conta dos demais aspectos de sua personalidade. Para enfrentar esta ansiedade, o indivíduo pode empreender uma carreira “curativa” e “reparativa” para assegurar-se a si mesmo que é capaz de emendar e reunir o que está roto ou “enfermo”. A necessidade emocional de combater as enfermidades pode ser bem uma ajuda ou um obstáculo para o exercício equilibrado, efetivo e maduro da profissão médica.
Tradicionalmente o estudante de medicina não tem sido orientado nesse sentido; o espaço que as escolas médicas dão em seu currículo ao estudo da Psicologia Médica e suas implicações com as demais especialidades médicas ainda, a meu ver, é muito pequeno.
O médico precisa saber, em primeiro lugar, que irá lidar com os mais diversos tipos de doentes.
As doenças podem ter origem em alterações orgânicas, em lesões anatômicas, como ocorre na inflamação, nos tumores, ou serem simplesmente expressão de um distúrbio funcional resultante de uma situação de ansiedade, de medo, de conflitos interiores.
A esses últimos, nos quais nada encontramos com os recursos da semiologia, rotulamos de neuróticos ou, simplesmente, no jargão médico, de “psíquicos”. Esses pacientes, que somam 1/3 do total, são, de modo geral, os que mais sofrem, porque o médico, comumente, falta-lhes com o apoio de que necessitam. São considerados impertinentes, indesejáveis e, em geral, perambulam pelos consultórios, exibindo coleção de exames e um rosário de queixas.
Ocorre ainda que as doenças orgânicas, de qualquer natureza, acarretam perturbações emocionais importantes no paciente e os distúrbios funcionais, por sua vez, podem levar a uma doença no sentido organicista da palavra, como ocorre na hipertensão arterial, úlcera duodenal, etc. Existe, portanto, uma inter-relação entre “soma” e “psique”, não se podendo, a rigor, dissociar as duas coisas.
Infelizmente a medicina sempre se preocupou quase que exclusivamente com o corpo, sobretudo após o advento da patologia celular de Virchow e a descoberta dos micróbios por Pasteur.
É a concepção organicista das doenças que prevalece até os nossos dias. “... pois este é o grande erro de nossos dias...”, dizia Platão, há mais de dois mil anos, “... os médicos separarem o corpo do espírito...”.
Incontestavelmente, foi a partir do advento da psicanálise que se iniciou o processo de esclarecimento do sentido dos sintomas de conversão, fundamentando-se na observação clínica rigorosa, que consistia numa anamnese detalhada e um método novo de pesquisa das motivações ocultas da doença. Essas investigações conduziram a conclusões básicas. Entretanto, a partir desse ponto inicial, durante aproximadamente quarenta anos, pode-se estimar esse período entre 1900 e 1940, a bifurcação da evolução das ciências médicas foi notória. Contudo, tanto no plano somático como no psíquico, o progresso que a pesquisa realizou nesses anos foi algo espantoso, como todos sabem. Ao mesmo tempo, porém, os instintos destrutivos dissociaram esforços, opondo-se à objetivação, na prática profissional, da síntese psicossomática. De uma maneira ridícula, os profissionais de um setor e de outro ainda às vezes se olham de esguelha, como adversários competidores. Essa é uma lamentável constatação à qual não podemos fugir, a não ser apelando para um mecanismo de negação da realidade médica. Mas em contraposição a esses aspectos depreciativos da dignidade das ciências médicas, de aproximadamente trinta anos para cá, vem sendo intenso o trabalho de construção de uma nova imagem do médico e da medicina, de molde a servir de guia da investigação e da prática profissional.
Logicamente, foram os conhecimentos advindos do setor psicanalítico acerca dos mecanismos psíquicos inconscientes que contribuíram para esclarecer muitos problemas da patologia, considerados antes como propriedade da órbita orgânica. Por sua vez, os psicanalistas não se julgam donos desses conhecimentos; quiçá possa estar surgindo agora uma disposição interna para que todos os médicos se valham desses recursos, na prática diária, para tornar menos tenso o desempenho profissional e proporcionar ao paciente mais chance de ser compreendido.
Superando o suposto vale conceitual entre o orgânico e a mente, a medicina deixou de ver em cada paciente não apenas um órgão ou uma função a investigar, mas uma pessoa a examinar e a tratar. Quando tal não acontece numa consulta médica, desconfiamos da capacidade do profissional.
O defrontar-se do médico com seu paciente, desde que o encare como gente e não como coisa, é o momento em que uma ação humana adquire sua mais alta dignidade. Se quisermos preservar a nobreza da medicina como profissão se impõe nossa reação contra a coisificação do paciente. Não só o médico, mas o paciente deverá sair também enobrecido duma consulta, além de aliviado, o que não costuma acontecer quando a relação médico-paciente está poluída, como na quase generalidade dos dias de hoje.
A doença causa, em geral, aos que cuidam do doente, especificamente ao médico, repugnância ou angústia, ou esses dois sentimentos entrelaçados. Contra eles devemos estar prevenidos, sob pena de perturbarmos a objetividade da nossa ação. Da parte do paciente igualmente ocorrem sentimentos positivos ou negativos, isto é, de extrema simpatia e inteira aceitação em relação ao médico, ou, pelo contrário, de rechaço.
Em qualquer especialidade médica esses sentimentos, puros ou mesclados, estarão sempre presentes, tanto no paciente como no médico, sem que nem um nem o outro tenha consciência da sua fonte. Naturalmente, em todas as demais relações humanas ocorre algo parecido, porém na relação médico-paciente isso é evidenciado com maior nitidez. Por que isso ocorre? Porque, como dissemos no início, a personalidade de todo paciente diante de um médico passa a funcionar num nível regressivo, por força de sua condição de paciente. Regredindo, pois, a um tipo de relacionamento infantil, principalmente com o médico que o trata, o doente transfere para este a sua maneira (seu modelo) de relacionar-se que outrora tivera com os objetos parentais. Por sua vez, o médico também está sujeito à idêntica regressão. Daí a importância de estar alerta a respeito dessa possibilidade, se possível tratado, o que lhe evitará desgastes emocionais desnecessários no seu trabalho diário.
Como se sabe, foi a Psicanálise que pôs em destaque a existência de tais pólos afetivos. Freud chamou a esses sentimentos transferência, a emoção que experimenta o paciente em relação ao médico e contratransferência o que sente o médico em relação ao paciente.
A investigação em torno desse jogo de afetos é de extrema importância em psicanálise, a ponto de se dizer que a psicanálise consiste na análise da transferência, sendo a contratransferência o roteiro seguro que leva o psicanalista às interpretações mais acertadas.
Nas demais especialidades médicas a situação é bem diferente. Mas de onde vem essa diferença? Do fato de que a relação médico-paciente não é tratada, é vivenciada. Os analistas a vivenciam e tratam, isto é, a analisam. Isto significa que investigam a sua origem, seguem a sua evolução, aprecia a sua forma e indagam da sua finalidade. E a contratransferência do analista está sujeita a um controle racional com base no tratamento analítico a que previamente se submeteu. Bem, isto também pode ser feito pelos demais médicos, basta que estejam familiarizados com as manifestações do inconsciente, o que só é possível quando vivenciou essas situações subjetivas na análise pessoal. Só o conhecimento teórico não basta. Do contrário, afora uma compreensão superficial mais ou menos polida, mais ou menos social, será difícil e fatigante manter o relacionamento com o paciente, durante um tempo prolongado, num plano racional adaptado. As consultas espaçadas, como costuma acontecer fora dos campos da psiquiatria e da psicanálise, constituem uma forma não intencional de profilaxia desses possíveis desentendimentos.
Evidentemente, em face do seu paciente, o clínico deverá dirigir sua atenção, em primeiro lugar, para o ponto ou os pontos que ele lhe indicar. Assim como o psicanalista não deverá interferir com perguntas intempestivas, capazes de desviar o curso das associações que levariam ao núcleo do conflito, também o clínico, dentro dos limites de tempo e espaço de que dispõe, deverá permitir e de certa forma estimular o livre relato do paciente que, muitas vezes, durante toda a vida, jamais teve oportunidade de dizer a alguém compreensivo aquilo que realmente o preocupa em matéria de saúde. Se o médico, como dissemos antes, é pessoa dotada de certa intuição psicológica e com algum preparo em psicologia médica dinâmica, e, mais que isso, com experiência analítica como paciente, estará, então, mais capacitado para compreender as fantasias inconscientes dos pacientes e, conseqüentemente, poderá ajudá-los melhor.
Penso que, sem pelo menos algum conhecimento da teoria geral das neuroses, possa parecer difícil aceitar e compreender a existência desses processos inconscientes. Resumindo, direi que, desde os começos da psicanálise, Freud concebeu a idéia de que a doença mental se desencadeia e se mantém em razão da satisfação que ela dá ao indivíduo. O processo neurótico se desenvolve em conformidade com o princípio do prazer e tende a obter um benefício econômico, isto é, uma diminuição da tensão. Este benefício é posto em evidência pela resistência do indivíduo à cura, pondo em xeque o desejo consciente de curar-se. Por doloroso que seja, o sintoma neurótico tem como fim poupar o indivíduo de conflitos intrapsíquicos que considera mais penoso. Da mesma forma podemos ver, nos sintomas “orgânicos” as mesmas motivações inconscientes acima descritas. Em vista disso é que reforçamos o que dissemos antes, ou seja, de que o médico, para compreender na totalidade seu paciente e manter com ele uma comunicação estreita, no campo das relações médico-paciente, deverá estar familiarizado com os conhecimentos advindos da psicologia médica dinâmica.
A essa altura vocês estarão se perguntando o que tem a ver tudo isso com o simples ato de se sentar diante de um paciente e perguntar-lhe onde e desde quando sente a dor que o aborrece?
Tentarei responder dizendo que em todos os setores da medicina (e não apenas na Psiquiatria ou Psicanálise) o nosso interesse não pode visar tão somente o corpo em toda sua complexidade, não unicamente o passado biológico e mórbido do indivíduo, senão também o campo das suas relações familiares e sociais, pois assim procedendo poderemos integrar corpo e mente para uma compreensão mais completa daquele que nos procurou para que o ajudasse-mos, mas, também, o compreendesse-mos.
Certamente muitas dúvidas terei suscitado em vocês; se tal ocorreu terei alcançado o objetivo que me propus, pois as dúvidas são geradoras de hipóteses.
Muitas coisas mais poderiam ser ditas se não estivessem além do nosso alcance. Para terminar quero lhes dizer que o Médico só se torna digno deste nome quando atinge a plena maturidade. Nem todos conseguem. Como definiu Weissmann, “alcançar a maturidade não é envelhecer, é passar da arrogância para a humildade, da indiferença para o amor, da inveja para a gratidão, da insegurança para a tranqüilidade; é aumentar em si os impulsos construtivos, livrando-se dos impulsos destrutivos; é compreender em vez de julgar, e isto só se consegue pelo conhecimento cada vez mais profundo se si mesmo”.

* Palestra proferida para alunos do 1º Ano de Medicina da EMED-UCPEL, em abril de 1996.
** Professor Adjunto nas Escolas de Medicina e Psicologia da UCPEL.
FREUD SÓ PENSAVA “NAQUILO”?

Durante uma palestra minha alguém da platéia perguntou por que nós, Psiquiatras e Psicanalistas, só pensamos em violência e sexo quando, na vida, há outras coisas tão mais ricas e bonitas.
Não era a primeira vez que tal pergunta surgia. Por isso não fiquei surpreendido; estou acostumado com essa visão equivocada do que seja a Psicanálise.
Muita gente pensa que a Psicanálise nos enxerga como bichos, o que não é justo, pois ninguém formulou, sobre as emoções humanas, uma idéia tão romântica, lírica e poética quanto Freud.
A Psicanálise nos ensina que já nascemos apaixonados. Quando estamos nos braços de nossa mãe não é só proteção, alimentação, calor e abrigo o que buscamos. Queremos que ela nos dê leite e... deleite. Queremos dela alimento para o nosso corpo e para nossa mente. Caro leitor, somos seres emocionados desde o primeiro ao último suspiro de nossas vidas! Já nascemos enfeitiçados por este feitiço que é o amor.
Amor é correspondência, é sintonizar à emoção daqueles que amamos e ser por eles sintonizados na nossa emoção. Tudo no amor tem de ser mútuo; nada nos fascina tanto quanto cativarmos aqueles que nos seduziram.
Só que esse amor não é platônico, ou apenas incorpóreo. Ninguém nasce anjinho, sueco ou alemão. Em nossas artérias e veias pulsa o sangue quente da paixão.
Somos pessoas de carne e osso; almas encarnadas. Na profundidade de nossas emoções não há atração de espíritos sem atração de corpos. Como não há atração de corpos sem atração de espíritos. A essência do amor é isso: um entusiasmo sensualizado, uma sensualidade entusiasmada. Ao estarmos enamorados buscamos um entrelaçamento de coração, cabeça, corpo e membros. Isso é o que Freud chama de sexualidade e não alguma animalidade no cio.
São energias que vibram e fazem vibrar nossa alma e nossos corpos. Não fossem essas energias em pouco tempo estaríamos todos mortos. São elas que garantem a continuidade da espécie, além – é claro – de garantirem todo o colorido da vida.
Toda timidez, angústia, depressão, etc. está intimamente ligada à percepção de que não somos, ou fomos suficientemente amados, que representamos pouca coisa no coração dos outros ou que perdemos algo ou alguém. Os bem-amados possuem sempre um sólido sentimento de segurança e auto-estima.
O amor, desde que razoavelmente correspondido no seu leito principal, desde que não excessivamente bloqueado no seu fluxo original, inunda todo o universo. “Irriga as plantas, preocupa-se com as baleias, os golfinhos e todos os bichos em extinção, enfim, procupa-se com a natureza, gerando sentimentos ecológicos; inunda todos os povos, culturas e países, gerando os sentimentos de fraternidade e os ideais políticos; decola da terra e levanta vôo para o céu, gerando sentimentos religiosos. Porque o amor é a essência da própria vida”.
Portanto, caro leitor, isso é que é sexualidade para a Psicanálise. Só quando ferida é que gera a brutalidade, o estro sem afeto, a violência.
Agora eu pergunto: existe alguma idéia mais bonita, mais poética e mais romântica do que a idéia que a Psicanálise faz de todos nós?

Dr. Nei Guimarães Machado
Médico Psiquiatra.
Publicado no Diário Popular de 19/07/2005.

Sunday, May 11, 2008

FELICIDADE

Uma amiga, por e-mail, pede que escreva sobre felicidade. Quando o título já vem pronto um recurso é recorrer ao “Aurélio”. Lá encontramos: “Qualidade ou estado de feliz: ventura, contentamento”.
Então é isso, ventura, contentamento? E como se chega a tão sonhada felicidade? Voltemos no tempo.
O processo começa na infância. É nessa fase, garante a Psicanálise, que formamos a opinião e o sentimento que temos por nós mesmos. Partindo dessas experiências primeiras, seremos capazes de respeitar, confiar e gostar de nós mesmos.
Então felicidade tem a ver com auto-estima? Certamente. Mas auto-estima centrada no indivíduo e não condicionada ou dependente de fatores externos. Muitas pessoas pensam que para ser felizes têm de TER, sem se darem conta que antes terão de SER. O ser vem antes do ter; primeiro o indivíduo é, para depois possuir. A realidade freqüentemente nos mostra isto, seja através de indivíduos que têm tudo, mas não se sentem felizes, seja através de despossuídos que irradiam amor e felicidade a qualquer momento.
Na Índia, os mestres dizem que a estrada mais longa que existe é a que vai do cérebro ao coração. Somente a sabedoria pode fazer as pessoas descerem do pedestal de super-homem para ser gente de verdade. Quando consegue se sentir “gente de verdade” o indivíduo está feliz. Como isto é difícil, tendemos a associar felicidade com objetos externos a nós. Nada contra uma boa casa, um bom carro, uma boa comida, um bom champanhe, etc., mas tudo isto, e otras cositas más, são complementos que podem, se bem usufruídos num momento de felicidade, aumentar nosso bem estar.
Pode-se desenvolver o sentimento de felicidade? Se o associarmos à auto-estima diremos sim. E como se faz isto?
· Invista no auto-conhecimento. Investigue-se, dedique mais tempo a você, suas necessidades, suas escolhas. Não tenha pressa.
· Seja carinhoso com seu próprio corpo. Mantenha a boa forma física, faça atividades prazerosas.
· Selecione as pessoas que terão o privilégio de conviver com você, de fazer parte da sua vida. Existem aquelas que, definitivamente, não valem à pena.
· Não culpe ninguém pelos erros que você comete e não encare as críticas como ataques pessoais. Relativize.
· Não tente agradar a todos. Aprenda a dizer não, pois em muitas situações essa expressão não só é inevitável como a mais adequada.
· Acostume-se com sua imagem no espelho e aprenda a gostar dela. Lembre-se que defeitos, todos têm.
· Ouça a sua intuição. Confie em você. No seu próprio valor, nas suas qualidades, ainda que os outros não reconheçam ou não concordem com você.
· Busque prazer no trabalho, afinal é onde gastamos a maior parte do nosso tempo. Portanto, além do dinheiro, ele deve ser uma fonte de satisfação.
· Como está sua casa? Reflete harmonia, equilíbrio e bem-estar? Uma casa desorganizada tende a destruir sua auto-estima.
· Acredite que você é uma pessoa especial, que merece ser amada. E a primeira pessoa a fazer isso é você mesmo.
E cabe dizer à querida amiga que provocou esta crônica: “... a felicidade não está em viver, mas em saber viver...”.

Dr. Nei Guimarães Machado
Médico Psiquiatra
Publicado no Diário Popular de 13/12/2005.