Saturday, March 25, 2006

Ajustamento à velhice: é possível isso?
Dr. Nei Guimarães Machado*

A idade modifica nosso relacionamento com o tempo. À medida que os anos vão passando vai-se encurtando o nosso futuro, enquanto o passado vai se carregando. As conseqüências dessa alteração repercutem umas sobre as outras, para gerarem uma situação variável segundo a história pregressa de cada indivíduo.
A adaptação à velhice é alguma coisa de muito delicada e depende, em grande parte, da personalidade prévia. “A gente envelhece tal como viveu” (Ajuriaguerra).
Bromlly, em seu livro “The Psychology of the Human Ageins”, nos descreve cinco tipos básicos de estratégias de ajustamento à velhice:

1. Continuar na velhice a ser “construtivo”.
A mais eficiente das estratégias. Constitui-se em uma continuação, na velhice, de uma atividade produtiva orientada para o futuro. O velho apresenta auto-estima alta, costuma olhar par sua vida passada com aprovação e pouco reparo, vive o que está por vir com otimismo e aceita o envelhecimento quase sem dar-se conta de que o tempo passou.
2. Continuar na velhice a ser “dependente”.
Uma estratégia que ainda resulta num “bem envelhecer”. É a continuação de um “estilo de vida” que se constituiu, sempre, em uma passiva tolerância para com as outras pessoas, oportunismo, e um contínuo evitar situações que pudessem produzir um distúrbio em sua segurança e conforto. Ao envelhecer fazem um bom conceito de si próprios e de suas qualidades e ações, se mostram satisfeitos com o mundo, não são ansiosos, mas tendem a ser super otimistas e pouco práticos.
3. Continuar na “defensiva”.
Esta estratégia já apresenta uma adaptação menos aceitável à velhice. Constituem um grupo heterogêneo, geralmente super controlados, convencionais e compulsivamente ativos. Em suas histórias de vida têm bom ajustamento ao trabalho e às ocupações; com isso tendem a ser auto-suficiente, recusando ajuda, para provar aos outros, e a eles mesmos, que não são dependentes, o que acaba trazendo, na velhice, medo à dependência e à inatividade. Vêem poucas compensações na velhice e têm inveja dos jovens. Para negar a pouca vida que lhes resta e a possibilidade da morte próxima, mantêm-se sempre ocupados com tarefas rotineiras feitas com esmero.
4. “Hostilidade”.
Caracterizada por “homens e mulheres hostis”, tendem a colocar nos outros suas próprias falhas, com uma visão irrealista sobre si mesmos e sobre o mundo. Expressam uma forte aversão à velhice, rejeitando tornarem-se criativos e dependentes dos outros, reagindo a isso agressivamente. Na velhice mostram ansiedade, pessimismo, depressão, sentimentos de culpa, falta de ambição. Não se conformam em “ser velho”, não vêem nada de bom nesta etapa da vida, apresentam medo da morte.
5. “Self-hate”.
Esta estratégia diferencia-se da anterior por estar a hostilidade voltada contra si mesmo. É o velho que nunca esteve satisfeito com sua vida e a desejaria viver de novo, reformulada. Pode aceitar a velhice, mas não o faz de maneira hábil, tendendo a exagerar suas incapacidades físicas e psicológicas. Geralmente são pessimistas, não acreditando que a própria pessoa possa influenciar em sua vida, sentindo-se eles próprios vítimas das circunstâncias. A morte não os assusta, sendo considerada mais bem como um ato de misericórdia para sua existência insatisfatória.

Cada uma dessas estratégias apresenta pontos comuns umas com as outras, pois cada episódio crítico, em qualquer etapa da vida, necessita de novos ajustamentos.
Finalizando direi que o ajustamento à velhice é possível sim desde que o idoso saiba aceitar sua idade, saiba abandonar seu campo de trabalho ou de ação ainda permanecendo ativo, saiba reagrupar suas forças em torno de outras atividades, por vezes novas e altamente criativas, adaptando-se a um novo tipo de vida. Saiba aceitar, sem ressentimentos, a atitude dos que o rodeiam diante de suas dificuldades, principalmente físicas e/ou mentais, colaborando, na medida de suas possibilidades com as novas gerações. Ao fazer isso, conseguirá, sem dúvida, um lugar de destaque no grupo humano ao qual pertence.
Esse seria um idoso (a) emocionalmente estável e adaptado (a) a essa nova etapa da vida, pois a Vida é para ser vivida, e apreciada, até o fim!


*Médico-Psiquiatra responsável pelo “Ambulatório de Transtornos Afetivos na Terceira Idade” do CETRES/UCPEL.
Publicado no Diário Popular em 09 e 16/03/2004
ADOLESCER NO MUNDO ATUAL

Dr. Nei Guimarães Machado*


Os fatores intrínsecos relacionados com a personalidade do adolescente são os que determinam, na realidade, os diferentes modos de conduta que os indivíduos dessa etapa da vida apresentam.
O adolescente, naturalmente, atravessa por desequilíbrios e instabilidade extremas, o que é visto, freqüentemente, como muito perturbador para o mundo dos adultos.
Mas ser instável, e aparentemente desequilibrado, é absolutamente necessário para que o adolescente vá consolidando sua identidade, que é o objetivo fundamental deste momento vital.
Como produto de uma evolução, o Ser Humano é, fora de dúvidas, um organismo biológico em perpétua interação com o mundo que o rodeia. Ora, o adolescente, como ser humano que é, não poderia fugir dessa situação, o que o leva a buscar adaptações principalmente com os seus semelhantes.
O que temos nós, os adultos, a oferecer aos nossos adolescentes? Vivemos em um momento histórico onde a violência e o sexo nos assedia, constantemente, através dos meios de comunicação de massa, se tornando coisas banais; onde a família se desagrega e as crianças sofrem; onde a diferença entre ricos e pobres se faz cada vez mais marcante e insuportável; onde os preconceitos raciais e religiosos se tornam motivos para expressar ódios intensos; onde a corrupção e a impunidade se tornam “valores” inquestionáveis.
O que constatamos, então? Um adolescente em conflito, em luta, em posição marginal frente a um mundo que o coarcta e reprime. Como resultado deste processo de marginalizar-se, vemos o adolescente buscar nas drogas e na violência das gangues um meio de expressar toda a insatisfação e incerteza em que vive, pois o mundo atual não lhe oferece modelos para chegar a uma adultez criativa.
Pensemos nisso com muita atenção, nós, os pais e professores dos adolescentes de Pelotas!

*Professor Adjunto de Psiquiatria e Sistema Teórico Psicanalítico na UCPEL (Escola de Medicina e Escola de Psicologia).
Diretor Científico e Professor no “Curso de Especialização em Psicoterapia Breve-Focal” do Instituto Sándor Ferenczi.
Publicado no Diário Popular
ADOLESCÊNCIA*
Prof. Dr. Nei Guimarães Machado**


Embora haja consenso entre vários autores ao definir a adolescência como um período de transição entre a infância e a idade adulta, não há definição precisa sobre os limites deste período de vida.
Em 1977, especialistas da OMS, estabeleceram como limites da adolescência as idades entre 10 e 20 anos, para fins de padronização, já que a maioria dos jovens em processo de adolescer encontra-se nesse período.
A palavra adolescer vem do latim e significa crescer, tornar-se maior, atingir a maioridade. A conceituação sobre adolescência recomendada pelo Seminário Latino Americano sobre Saúde do Adolescente, realizado em outubro de 1977, diz:

“Adolescente é o indivíduo que se encontra em fase peculiar
de transição biopsicossocial, período este caracterizado por
transformações biológicas em busca de uma definição de seu
papel social, determinado pêlos padrões culturais de seu meio”.

Basicamente a adolescência envolve três vertentes conjugadas, o componente biológico, o sociocultural e o psicológico.


FATORES BIOLÓGICOS

Ao conjunto das transformações físicas que ocorrem na adolescência chama-se puberdade. A maturação normal depende do desenvolvimento, funcionamento e integração de um sistema glandular complexo, que envolve o hipotálamo, a hipófise, as gônadas e supra renal. Somente após a menarca (primeira menstruação), que geralmente se dá ao redor dos doze anos de idade, e após a primeira ejaculação, perto dos treze anos de idade, é que se estabelece integralmente a adolescência.
As alterações mais marcantes da puberdade feminina iniciam-se pela telarca (desenvolvimento das mamas). Ao mesmo tempo a distribuição da gordura passa a seguir o padrão feminino e inicia-se a pubarca (crescimento de pêlos púbicos e axilares). Por essa época ocorre um rápido e acentuado crescimento da estatura (estirão), que atinge o máximo, em média, aos 11,7 anos de idade. A menarca ocorre ao final desse estirão. Essas mudanças são regidas pelo estrogênio e a progesterona.
Nos meninos, inicialmente, há o desenvolvimento dos testículos e escroto. Quase concomitantemente ao crescimento dos pêlos púbicos e axilares ocorre o estirão, que atinge a velocidade máxima de incremento, em média, aos 13,7 anos, portanto mais tardio do que nas meninas. No final do estirão ocorre o aumento do pênis.
Além dessas modificações de ordem sexual, observa-se a melhora das habilidades motoras, para as quais a coordenação, agilidade e velocidade são necessárias, sendo o limite de desenvolvimento a idade dos quatorze anos. A partir daí não se observam mudanças físicas significativas para ambos os sexos, a não ser no que diz respeito à voz e crescimento estatural para os homens, este último concluído aos 21 anos, aproximadamente.


FATORES SÓCIO-CULTURAIS

Há sociedades em que a transição entre criança, adolescente e adulto é um fenômeno natural e contínuo, que não provoca desafios ao ser humano. Trata-se, portanto, de um condicionamento cultural contínuo. Para ilustrar essa visão vale citar o simbolismo que ocorre entre os índios Cheyenne. Ao nascer, o pequeno índio ganha um pequeno arco, que vai sendo trocado por maiores à medida que ele cresce. O mais velho o ensina a caçar, numa seqüência lógica, iniciando pelas caças que são facilmente apanhadas. A família participa desse aprendizado, festejando cada conquista como um grande acontecimento, tendo a mesma importância do que a caça de, por exemplo, um búfalo, conseguida por seu pai. Quando finalmente cresce e consegue ele mesmo abater um búfalo, nada mais fez do que concluir um condicionamento que se iniciou na infância, não representado um novo papel assumido na comunidade.
Por outro lado, o condicionamento cultural descontínuo impõe verdadeiras barreiras sociais para se atingir a condição de adulto. Em algumas sociedades os chamados “ritos da puberdade” são cerimônias de iniciação para a vida adulta. Em alguns povos aborígenes da Austrália, os iniciados são colocados em “túmulos”, ou cobertos com galhos de árvore, fingindo-se de mortos. Durante essa iniciação os familiares permanecem de luto, como se o iniciado tivesse morrido mesmo e ao despertar vá para a nova vida de adulto.
Muitos desses “rituais de passagem” incluem torturas físicas, perfurações de orelhas, nariz, etc. Na África, entre os Masai, a iniciação começa pela circuncisão nos meninos e a clitoridectomia nas jovens. No Brasil, entre os índios Tupinambás, os “ritos da puberdade” atingem apenas a menina e inicia-se com a menarca. Ela é, então, obrigada a jejuar por três dias consecutivos, têm seus cabelos raspados, suas costas cortadas e nelas colocadas cinza para que fique marcada para sempre.
Vale ressaltar que, em muitas dessas culturas, a passagem da infância para a vida adulta ocorre sem que se identifique uma fase de transição.
Pode-se observar, ainda, que numa mesma cultura, o determinante da adolescência é a classe social a que pertence o indivíduo, com comportamentos próprios correspondentes àquele nível sócio-econômico. De modo geral a sociedade ocidental considera o jovem como representante de um grande mercado consumidor. Nas classes sociais mais pobres o jovem representa apenas um bom segmento de força bruta de trabalho, sem condições adequadas de se desenvolver, integralmente, como ser humano.


FATORES PSICOLÓGICOS

O campo que estuda a psicologia da adolescência é vasto e repleto de controvérsias. Ele baseia-se na interação da pessoa com o meio ambiente.
Segundo Knobel, as características principais do adolescente são a busca do eu próprio, tendência a se instalar em grupos, necessidade de fantasiar e intelectualizar, crises de religiosidade, falta de conceito do tempo (imediatismo), busca de atividades sexuais, comportamento reivindicatório, condutas contraditórias, independência progressiva dos pais, flutuações de humor e estado de ânimo. São ainda aspectos marcantes da adolescência a insatisfação, a insegurança e a agressividade.
Provavelmente, o ponto central da adolescência gravita em torno da busca do eu próprio, ou seja, a busca da identidade. Muitos autores concordam com essa perspectiva, acreditando que a gênese da elaboração da identidade adulta comece já na primeira infância.
No desenvolvimento da identidade há um fator muito importante que é a informação. Este é um processo de comunicação que integra os aspectos afetivo e intelectual entre a criança e o seu ambiente familiar e social. Desta forma torna-se evidente que o desenvolvimento psicossocial depende bastante dos pais. A escola é outro agente social de grande relevância no processo de formação da identidade própria. Ela representa o primeiro contato do jovem com pessoas que, além dos pais, também representam a autoridade.
Na construção da identidade pessoal há também que se considerarem os grupos de parceria, isto é, as pessoas significativas para o adolescente, que geralmente são os companheiros (“turma”), que passam a influenciar o comportamento do adolescente, muitas vezes até mais do que os próprios pais e professores. No grupo, o jovem vai construindo o seu próprio eu, buscando a aprovação, a admiração e o respeito dos outros companheiros.
Como se depreende dessas idéias, a maturidade psicológica é reflexo da integração do próprio ser (incluindo aqui o biológico) com o seu meio ambiente (aspectos socioculturais).
Portanto essa integração biopsicossocial é um período delicado da existência humana. O adolescente sente-se inseguro pois já não é mais criança e tampouco adulto tendo dificuldades em se definir nas diversas situações de sua cultura.
A tentativa de ultrapassar a insegurança e de se auto-afirmar pode levar à transgressão, à busca do prazer imediato, às atitudes desafiadoras e ao uso de drogas que aparentemente aliviam todas as insatisfações que sobrevêm durante a adolescência.

*Material compilado e organizado para servir de introdução à Disciplina de “Psicologia do Desenvolvimento” do Curso de Especialização em Psicoterapia Breve-Focal do Instituto Sándor Ferenczi.

** Diretor Administrativo e Professor do “Curso de Especialização em Psicoterapia Breve-Focal” do Instituto Sándor Ferenczi; Pelotas – RS – Brasil.
Professor de “Sistema Teórico Psicanalítico” na Escola de Psicologia da UCPEL.
Médico Psiquiatra responsável pelo “Ambulatório de Transtornos Afetivos na Terceira Idade” do CETRES/UCPEL.

Friday, March 24, 2006

A FUNÇÃO PATERNA
(O PAI E O EXERCÍCIO DA AUTORIDADE)
Dr. Nei Guimarães Machado*


Em tempos mais recentes tem sido discutida freqüentemente a questão da colocação de limites nas crianças e adolescentes e, por via de conseqüência, o exercício da autoridade paterna. Pais e mães encontram-se perplexos diante dos desafios que os tempos modernos impõem na criação de filhos. Os valores morais são abstratos, no entanto sua transmissão de dá na concretude da convivência diária, por meio da assimilação de gestos e atitudes.
O que vemos: nossos jovens convivendo com atitudes dos pais (e autoridades) que desmentem seus prolixos sermões sobre a importância da disciplina e do respeito ao próximo. Pais que passam pelo acostamento quando a estrada está congestionada, param em fila dupla na frente da escola, desrespeitam a faixa de pedestres; professores que não cumprem horários nem programas de suas disciplinas; políticos que pregam uma coisa e praticam outras; policiais que deveriam proteger a sociedade, mas se associam aos bandidos; etc.
Freqüentemente os pais transmitem a seus filhos a mensagem de que não vale a pena ingressar no mundo adulto, feito de obrigações e encargos, pois apresentam o trabalho como um fardo intolerável, a relação conjugal ridicularizada como enfadonha e a presença de filhos apenas como um fator de desgaste.
Ora, diante dessa figura acabrunhada de pai que volta do trabalho como se carregasse um fardo, de uma mãe resmunguenta que se queixa da injustiça de sua jornada dupla, como esperar que os filhos respeitem esses adultos infelizes e queiram se espelhar neles como modelos a ser seguidos? O que se vê, então, são adolescentes “rebeldes” que não querem “crescer”, que retardam o mais possível o ingresso no mundo adulto e que têm comportamentos francamente desafiadores e, por vezes, agressivos até.
Os pais (e as mães!) ficam confusos para lidar com as frustrações dos filhos, confudindo-as com erros ou desvios de rota, sem poder entender que fazem parte do desenvolvimento humano, sobrecarregando-os com gratificações que só fazem incrementar a baixa tolerância à não satisfação imediata dos desejos, “criando” verdadeiros “monstros exigentes” em suas próprias casas. Quando, então, num gesto de desespero, tentam colocar limites se defrontam com a terrível frase dos filhos: Vocês são muito caretas! Ora, essa é a mais injusta das acusações, pois sempre nos esforçamos muito para não seguir os passos de nossos pais, estes sim verdadeiros e autênticos caretas. Caretas, nós!?
Mas por que os pais têm tanto medo de ser (ou parecer) careta?
Na manutenção e renovação da vida, em cada geração pais e filhos precisam se confrontar, num embate em que o jovem representa a mudança (portando ser responsável pela crítica e pela contestação), enquanto a geração mais velha é depositária da manutenção e transmissão de valores já testados e consagrados. Trata-se de uma luta simbólica, com regras justas e claras. É preciso, portanto, reafirmar, constantemente, que o trabalho não é um fardo, mas sim um espaço de desafios e descobertas, de satisfação e realização pessoal; que a experiência de paternidade (e maternidade também) traz um sopro renovador para a vida do casal; que o vínculo conjugal não é necessariamente um grilhão que tolhe a liberdade e impede o vôo: é muitas vezes o porto seguro para que o vôo se faça com maior segurança. Somos caretas sim, quando temos pudor de reafirmar nossas escolhas e confessar nosso compromisso com a ternura; quando não dizemos aberta e francamente que gostamos de nossos filhos, mas que, por vezes, não gostamos de certos comportamentos deles. Somos caretas ao fugirmos de olhar mais de perto o que caracteriza a cultura jovem dos tempos atuais e compreendermos o quanto ela é diferente da nossa, sem ser pior nem melhor. Se mudarmos continuamente de posição, para parecer sempre avançado e liberado, nossos filhos não terão clareza de seus limites nem de suas competências.
Precisamos ser mais autênticos e sinceros; talvez, então, possamos oferecer canais mais adequados para a elaboração da rebeldia de nossos filhos.

*Professor Adjunto na Escola de Psicologia da Universidade Católica de Pelotas, responsável pela Disciplina: “Sistema Teórico Psicanalítico”; Médico Psiquiatra do Centro de Extensão em Atenção à Terceira Idade (CETRES-UCPEL), responsável pelo “Ambulatório de Transtornos Afetivos na Terceira Idade”; Diretor Científico e Professor no “Curso de Especialização em Psicoterapia Breve-Focal” do Instituto Sándor Ferenczi.
A CONCRETIZAÇÃO DE UM SONHO
Há cerca de 10 anos, em minha casa, um grupo de entusiastas apreciadores da música lírica e coral, reunidos em torno de Gilberto Braga, sonha em vir a montar , um dia, uma ópera em Pelotas. Do desejo surge a idéia e, desta, a ação. É fundada, então, a Sociedade Pelotense Música pela Música, tendo eu o privilégio de vir a ser seu primeiro Presidente, em uma Diretoria Provisória, que buscaria a regulamentação da novel instituição. Já no final daquele anos (1990) a Sociedade se apresentava num memorável Concerto de Natal na Catedral Diocesana de Pelotas. Desde então não parou mais de crescer; vieram outros dirigentes com tanto, ou mais, entusiasmo que os pioneiros, culminando no magnífico espetáculo que assistimos no Teatro Guarany: a ópera em sua plenitude musical e cênica!
Obrigado a todos: maestro, cantores, coralistas, cenógrafos, coreógrafos, atuais dirigentes por terem concretizado o sonho de muitos pelotenses e de alguns, em particular.
Dr. Nei Guimarães Machado
Médico

Obs.: este material foi publicado no Diário Popular, na sessão “Instantâneos”.
UMA RELEITURA PARA “EL JARDIN DE SENDEROS QUE SE BIFURCAN”.

Voltemos no tempo, para cinco anos antes dos fatos narrados em “El Jardin de Senderos que se bifurcan”.

Yu Tsun, vindo da Colônia Britânica de Hog Kong, desembarca em Londres.
Filho de um rico empresário do ramo da construção civil havia sido nomeado para um cargo burocrático no Ministério do Interior por ter mãe britânica e, também, haver se destacado como estudioso de “História Contemporânea”.
O que poucos sabiam é que Yu Tsun guardava um segredo. Estudara História para conhecer melhor sua origem chinesa. Considerava os ingleses uma raça inferior, uns “bárbaros” que dominavam o mundo pela força da espada. Os antepassados paternos teriam sido sábios a serviço do Imperador. Isso marcara sua infância, com fantasias de vir a ser, também, um grande “conselheiro do rei”.
Uma mente dividida entre a admiração ao pai e o desprezo pela mãe era terreno fértil para se deixar influenciar. Por essa época, início do século XX, o Império Alemão era o que mais se aproximava das antigas glórias orientais. Cultura, sofisticação, rápido crescimento econômico e desejos hegemônicos sobre a Europa fascinavam Yu Tsun. Foi fácil para a Inteligência alemã convencê-lo a se tornar um colaborador, uma maneira suave de dizer espião.
Ao chegar a Londres instala-se em um pequeno hotel, em Charing Cross, que fica perto do Whitehall, onde se erguem os Ministérios das Relações Exteriores, das Colônias, da Índia e do Interior. Lugar estratégico, pois pode se deslocar a maior parte do tempo a pé, passando-se discretamente por um transeunte comum (já por essa época havia muitos chineses em Londres). Mais ao norte levanta-se o Museu Britânico, imenso depósito de tesouros, onde Yu Tsun pode ver quanto os ingleses, em suas conquistas pelo mundo, roubaram os países conquistados. Usava isso como uma espécie de justificativa para o que estava fazendo.
Seu trabalho, no Departamento de História do Ministério do Interior, consistia em compilar as notícias dos diversos jornais europeus que ai chegavam e interpretar, para seu chefe imediato, capitão Richard Madden, se o Império Alemão constituía um risco para o Império Britânico. No entanto, através desse mesmo sistema, ia “plantando” pequenas notícias nos jornais londrinos, que seu Chefe, em Berlim, decodificava como informação estratégica para o Ministério da Guerra.
Durante três anos suas atividades foram discretas, sem levantar suspeita alguma. Era um homem de hábitos simples, silencioso, cumpridor de horários, o que encantava seu chefe, um irlandês que, para ser aceito entre seus colegas de Ministério, era mais “inglês” do que os ingleses. Em 1914, a partir dos acontecimentos de Sarajevo, eclode a Grande Guerra. É a oportunidade que Yu Tsun esperava! Tem de mostrar ao Chefe que podia ser útil à causa alemã. Associa-se a outro espião, Viktor Runeberg, e começa a enviar relatórios para o Ministério da Guerra germânico. Ao ficar mais agitado, perde um pouco de sua discrição e começa a levantar suspeita. Em 1916, por ocasião de uma grande ofensiva que as tropas britânicas iriam desencadear, Richard Madden desconfia de sua movimentação e começa a seguir Yu Tsun. Descobre a ligação com Viktor Runeberg, que é morto ao tentar fugir, e sai ao encalço “do chinês traidor”. O resto vocês sabem através da leitura do conto de Jorge Luis Borges, “El jardin de senderos que se bifurcan”.

Nei Guimarães Machado / Oficina de Criação Literária / Março de 2004
VINHO

Um dia frio, apesar de ensolarado. Bom para planejar encontros de final de tarde em algum lugar envidraçado e com lareira. De preferência com vista para o pôr-do-sol.
Com esses pensamentos, Maurício caminha pela Rambla, em Barcelona. Está ali por causa de um Congresso sobre petróleo. Muito papo de americanos e sauditas em torno de cotas e preços. Para ele tudo soa como “papo furado”, pois a Petrobrás, que o havia enviado ali, acabaria fazendo o que os americanos decidissem. O melhor era ir caminhar, conversar com alguém, tomar um vinho. Numa esquina que se abre para o mar encontra um bar (ou restaurante?) que se assemelha com o que vinha idealizando. Coincidência? Coisas do Destino? Bah! Não acreditava muito nessas coisas, o que tinha de fazer era tratar de aproveitar a oportunidade.
Era um cara de sorte, pensou. Uma mesa, ao lado de uma grande janela envidraçada, próxima a uma estufa a gás, convidava a sentar, mas uma mulher ocupava um dos lugares. De meia-idade, olhar sereno e gestos calmos, parecia ser simpática. Resolveu arriscar. Aproximou-se, fez o melhor sorriso que tinha e perguntou se poderia sentar. A mulher ficou surpresa, fez cara de espanto, mas contagiada pelo sorriso, ou porque estava de bem com a vida, disse que sim. Apresentações: ele turista brasileiro; ela madrilenha, professora de matemática numa escola secundária de Barcelona.
O que conversariam pensava Maurício quando, para sua surpresa, ela pergunta se conhecia os vinhos espanhóis. A princípio pensou em dizer sim, mas olhando para aquela mulher simples, mas com uma elegância de gestos e uma firmeza no olhar, resolveu dizer que não. Afinal sempre poderia aprender alguma coisa!
Absorto naquela atmosfera de encanto, como havia pensando enquanto caminhava pela Rambla, deixou-se levar pela voz suave e firme de Sarita (assim se chamava aquela espanhola não muito bonita, mas encantadora), que falava sobre os diversos vinhedos do país. Por momentos imaginava que estava ali com Laura, que era ele quem “ensinava” sobre vinhos e que ela, olhos bem abertos de admiração, absorvia cada palavra dele como quem toma, gole a gole, um cabernet de boa safra. Por fim consegue se concentrar no exato momento em que Sarita sugere um “Marquês de Riscal” dos vinhedos de Rioja. “Crianza” ou “Reserva”? Diz ela. Reserva, pensa ele, deve ser coisa melhor, então, com cara de conhecedor, diz: Reserva. Ela move a cabeça como sinal de aprovação e sorri para Maurício. Começava, assim, uma amizade que duraria muitos anos.

Nei Guimarães Machado
Oficina de Criação Literária
Dezembro de 2003.
BIG BROTHER

Há tempos as amigas insistiam para que visse o Big Brother. Não era “metida a intelectual”, mas a assombrava mulheres de meia-idade como ela, com curso superior, vendo aquele lixo. Pessoas exibicionistas, com escassa cultura, metidas numa casa para conviverem forçosamente durante três meses, só podia sair baixaria. E disso já tomara um fartão!
Não gostava de falar, mas tinha de desabafar. Vivera uma infância difícil, com pais brigando constantemente. Ela e o irmão mais novo tinham de ouvir as queixas que faziam um do outro. Desqualificações, por vezes palavreado chulo, xingamentos e brigas corporais foram uma constante na vida dela até os quinze anos, quando fugiu de casa para nunca mais voltar. Saíra sem olhar para trás, deixando tudo e todos. Doía muito ter de abandonar o irmão, mas se ficasse enlouqueceria ou seria uma mulher amarga, como sua mãe.
Trabalhara como doméstica e, por sorte ou por instinto de sobrevivência, se saíra bem. Tivera amizade dos patrões, nunca lhe perguntaram nada, estímulo, também. Pode estudar e “se fazer na vida” como costumava dizer. Aliás, costumava pensar, dizer alguma coisa de si mesma era muito raro.
Aos vinte e oito anos já havia concluído o curso de Pedagogia e a Pós-graduação em Psicopedagogia. Aprendera a gostar de crianças no seu trabalho. Deu-se conta que gostava de ensinar quando foi convidada para falar sobre sua experiência, no Dia da Empregada Doméstica. Desde então, decidira ser professora. Foram anos de sacrifício, trabalhando de dia e estudando à noite. Novamente, “sorte ou instinto de sobrevivência” foram fundamentais para seu êxito. Agora, já casada e com dois filhos, respeitada como educadora de classes especiais, não perderia tempo assistindo baixarias das quais, há muito, fugira.
Quando mais jovem lera “1984” de George Orwell, e ficara impressionada. A idéia de uma televisão, que tudo via e tudo controlava, a assustava. Agora, havia câmaras de vigilância em quase todos os lugares do seu mundo. Ah! Ainda não era espiada em sala de aula. Por isso, espiar os outros, mesmo sendo através de um programa na rede aberta de TV, a aborrecia. Mas o ser humano é curioso por natureza; se não fora assim, como seria a civilização?
Por fim, capitulou e, numa noite de terça-feira, a mais “movimentada”, assistiu ao programa. Uma baixaria só! Mas não conseguia despregar os olhos da tela. Sentia-se incomodada com aquilo, algo mais forte a mantinha ali. Subitamente deu-se conta: paralisada, estava de volta à casa dos pais, assistindo brigas intermináveis, a espera de um desfecho trágico. O que mais abominava voltara com toda a força!


Nei Guimarães Machado
Oficina de Criação Literária
Março de 2004.
APETITOSA

Maurício se surpreendeu com a entrada de Laura no restaurante.
- Tudo menos isso, pensou.
Não a via desde quando romperam o namoro, há sete anos. Tinha sido infantil e arrogante; imaginar que podia tocar a vida sozinho, sem ninguém para atrapalhar, era muita pretensão! Foram sete anos de conquistas pessoais, crescera na profissão, era respeitado, mas a presença de Laura ali, no mesmo lugar que ele, perturbava-o.
- É, ela está linda, apetitosa. Credo, que palavra para qualificar uma pessoa! Deve ser porque estou num restaurante, pensou. Mas era apetitosa, como uma manga madura. Havia um rubor na face, assemelhado ao rosado da manga e, ainda por cima, a pele macia. Isso ele lembrava bem.
Imaginou tocá-la, passar a mão de leve pelo seu corpo, aspirar seu cheiro, sentir seu gosto.
- Estou ficando excitado! Num restaurante e sozinho, é muita tristeza.
Ela estava acompanhada por um homem que lhe parecia conhecido. Ficou olhando-os e imaginando quem seria aquele cara bonitão, sarado, boa-pinta.
- Que raiva ficar me comparando!
Mas o cara era “o cara”. Qualquer mulher adoraria estar no lugar de Laura. E ele ali sozinho, já com vários cabelos brancos, roupas um tanto surradas, corpo meio flácido.
- Para Maurício! Disse para si mesmo. Para de te comparar. Saíste há pouco do trabalho, entraste no restaurante sem nenhuma pretensão a não ser jantar e depois ir para casa, agora terias de estar brilhando aos olhos de Laura?
Seguiu pensando essas e outras coisas a respeito de si mesmo, o quanto havia perdido e no que se transformara. De repente, se dá conta, ela não o tinha visto.
- Melhor assim, posso sair de fininho e não pagar mico.
O brabo era estar num daqueles dias de baixa auto-estima, quando o sofrer parece ser a única finalidade da vida. Não podia sair assim, tinha de falar com Laura, se mostrar um pouco, quem sabe até exibir aquela superioridade intelectual que ela tanto apreciara e, certamente, arrasaria aquele boneco musculoso que a acompanhava. Coisa de macho disputando território!
- Vou lá; não, não vou, vai ficar ridículo. A ansiedade e a dúvida agora tomavam conta dele. Deixo de pensar neles, olho para outro lado, peço uma sobremesa ao garçom, faço alguma coisa e esqueço a presença dela. É difícil, ela é apetitosa mesmo e aquele paspalho nem toca nela.
- Xí! Ela levantou e está vindo em minha direção, o que faço?
- Oi! Maurício, surpresa agradável, bom te ver! Posso ficar aqui um pouco? Não estou agüentando mais a companhia daquele meu amigo gay.

Nei Guimarães Machado
Oficina de Criação Literária
Maio de 2004.
A REVELAÇÃO

Maurício há dias, sentia-se inquieto; dormia mal, tinha pesadelos, por vezes acordava no meio da noite com a sensação de que algo ruim estava para acontecer. Nessas ocasiões sentava na cama, no escuro, tentava fazer um balanço de sua vida.
Atualmente trabalhava no melhor de sua área: prospecção em Mina carbonífera para avaliar seu potencial de exploração. A firma pagava bem, alojamentos confortáveis, comida excelente para as circunstâncias – o cozinheiro era um cearense metido a maitre – e até dava para “namorar umas meninas” na cidade próxima a Mina. Quando terminasse seu contrato, de três meses, voltaria para Porto Alegre, para o apartamento, a música, os poucos amigos e Laura. Ah! Laura, como sentia sua falta. O mal estar dos últimos dias teria algo a ver com Laura? Há tempos não se falavam, em parte pelas dificuldades de comunicação, mas, também, pelo seu jeito acomodado de ser. Era como se não precisasse dizer aos outros o quanto gostava deles, principalmente para a família, tão pequena, e Laura.
Finalmente chegou a ocasião de ir a Porto Alegre. Tinha de entregar uns papéis junto à Justiça Federal a fim de liberar a área onde se situava a Mina e aproveitaria para ver Laura. Não avisaria, seria uma surpresa! Pensando melhor agora, se dava conta: o surpreendido poderia ser ele; lá vinha de novo aquela espécie de premonição.
Como era costume quando retornava ao apartamento, a primeira coisa foi colocar sua amada 9ª Sinfonia na vitrola – assim mesmo referia-se a este ato tão trivial. Depois foi ver a correspondência, só então, ligaria para Laura. Surpreso, encontrou uma carta do pai. Ficou olhando o envelope por um longo momento, procurando adivinhar o conteúdo. Estranho receber carta do pai. Aquele homem, a quem tanto admirava, sempre tinha sido distante e ao mesmo tempo exigente. Pouco se falavam, e quando o faziam era de maneira um tanto formal e uma carta revelava intimidade. Diferente da relação com a mãe, amiga e confidente, apesar de sua dondoquice. Mas não dava para seguir com cogitações, tinha de abrir logo aquele envelope.
A carta estava escrita à mão, numa letra grande, mas um tanto trêmula:
Querido filho Maurício.
Fico imaginando tua surpresa ao receber carta minha. Nestes anos todos que estamos separados pela distância geográfica, nunca nos correspondemos. Sempre há uma primeira vez e, como tua mãe está muito “ocupada” com chás de caridade, quermesses... só me restas tu para desabafar. Estranho dizer isto: desabafar, sempre abafei meus sentimentos e nunca pude dizer o quanto te amava...

Maurício começa a ficar inquieto, aquela sensação ruim dos últimos dias volta com força. O que aquele homem, sempre tão distante, estava querendo dizer?

... estou agora, em tua presença, para falar de mim. Não sei bem por onde começar, se pela tristeza dos anos perdidos ou se pelo desgosto do tempo que me resta viver. Porque é triste viver em solidão, mesmo cercado de gente. Sempre soube, não poderia ser bom pai, pois como filho fui um desastre. Nasci na contramão da vida de meus pais. Fruto de uma “travessura” da juventude, numa época em que essas travessuras não eram toleradas como hoje, vim desunir mais o já precariamente unido. Cresci com a culpa, isso teve como conseqüência ser um tipo frio e distante. Tive mais dois irmãos e uma irmã, como bem sabes, mas muito cedo saí de casa para sentir-me um pouco melhor. Trabalhei, estudei, venci profissionalmente, mas nada disso derreteu o gelo de meu coração. Quando conheci tua mãe, pensei que seria feliz, alegre e “solto”. Aos poucos fui me desiludindo ao me dar conta: ela também tinha dificuldades para se soltar. Formamos uma bela dupla de “trancados”. Tivemos sucesso profissional e social, mas escassa cumplicidade. Depois, nasceste e tive ciúmes. Para ti ela dava todo o afeto negado a mim. Fui me afastando, cumprindo formalmente meu papel de pai e marido e sendo, cada vez mais, um ser solitário. Agora estou aqui, com minha solidão, meus medos, minhas dificuldades, tentando te dizer o quanto preciso de alguém para me escutar e consolar.

Começava a ficar claro para Maurício: algo grave havia acontecido. Uma briga com sua mãe, separação? Doença! E essa palavra estourou em sua mente. Respirou fundo para se encher de coragem e seguir na leitura.

Ultimamente como vinha me sentindo mais desanimado, e triste, sem prazer em nada, um colega sugeriu que procurasse o Dr. Filipe Velásquez, clínico espanhol radicado aqui no Rio, há alguns anos. A princípio achei bobagem, aliás, como sempre faço quando alguém recomenda algo, mas como o mal-estar não passava, fui. Gostei do médico. Atencioso sem ser meloso, foi me examinando e, aos poucos, mostrando o que encontrava. Aparentemente não era grave, mas seriam necessários alguns exames; sugeria a internação por um par de dias para uma espécie de chek-up. Concordei, fizesse o necessário, imediatamente estranhei minha “entrega”. Tua mãe foi chamada, fomos para a Clínica Botafogo, fiquei realmente dois dias lá, onde me “viraram do avesso” e agora aqui estou, diante de ti, para dizer o que mais temia: tenho câncer!

Maurício sente as pernas afrouxarem, falta-lhe o ar, a mente turbilhona como se os pensamentos não coubessem dentro da cabeça. Tem vontade de chorar.

Câncer no fígado! Logo eu que nunca bebi mais de uma ou duas taças de vinho em algum jantar sofisticado. Mas câncer, esta palavra tão terrível, pode ser como “um raio em céu sereno”: aparecer quando menos se espera. Tua mãe está inconsolável e vai precisar muito tempo para se recuperar. Será por algum sentimento em relação a mim, ou porque vai atrapalhar a atividade social dela? (estou sendo sarcástico, mas é difícil mudar numa hora dessas). Bem filho, é isto! Enquanto escrevia cheguei a duvidar se mandaria mesmo esta carta, mas se não for agora, se não me mostrar, talvez nunca venhas a saber, o quanto gosto e preciso de ti. Recebe pois, um beijo saudoso do pai e amigo,
Antônio.

Maurício dobra a carta e só consegue pensar em Laura.


Nei Guimarães Machado
Oficina de Criação Literária – 2003.

Thursday, March 23, 2006

IMPENETRÁVEL

Sentado à varanda pensava que há muito deixara de querê-la. Era fria e distante. Tinha lá suas razões. Sofrera muito com perdas e uma educação rígida, mas não se reciclara. Agora, na metade da vida, tentava manter uma aparência jovem, mas envelhecera por dentro.
Ele era inquieto, um tanto insatisfeito talvez, mas tinha claro que mulher, além de companheira, tinha de ser mulher. Sem frescuras, sem pudores, assumindo o desejo com alegria, como uma parte importante da vida. Nada a ver com atletismo sexual, como certas revistas femininas preconizam, mas com satisfação, contentamento, riso fácil, sono leve.
Por anos buscou isso junto a ela. Não encontrou. Sequer o diálogo havia, pois quando tentava falar em sexo, ela se fechava num mutismo impenetrável. Pensou na palavra e teve a compreensão buscada! Ela havia levantado defesas ao longo dos anos e, por fim, construído um muro em torno de si. Era uma fortaleza no alto de uma rocha! Inatingível. Por isso não respondia aos apelos dele. Era impenetrável.
O que fazer diante de tamanho obstáculo? Desistir, prosseguir assim? Uma e outra alternativa soava como derrota. Ah! Contornar o obstáculo poderia ser uma saída. Ir em busca de alguma coisa, ou de alguém, que lhe calmasse o desejo.
Havia as drogas e as mulheres. A primeira nunca experimentara e não seria agora, ao se aproximar da terceira idade, que se tornaria um drogado. Restavam as mulheres. Era uma saída. Hoje, cada vez mais jovens e atrevidas, assustam, pensava ele. Tinha medo do ridículo, mas mais ainda da solidão. Sempre dissera que a vida era para ser vivida, e permanecer onde estava era a morte.
Com esses pensamentos levantou e se encaminhou para a porta.

Nei Guimarães Machado
Oficina de Criação Literária
Maio de 2004.
O ENCONTRO

Conheci-a por acaso. Fui a uma Repartição Pública a pedido de um amigo e lá a avistei por primeira vez.
Num imenso saguão de uma dessas suntuosas repartições federais, por trás de um balcão de granito rosado, vejo uma mulher de sorriso franco, dentes muito alvos e belos olhos marotos. Aproximo-me e ela se levanta. É alta, esguia e veste um vestido vermelho, solto, que vagamente delineia um corpo muito bem feito.
Penso:
- É uma falsa magra!
Ela pergunta:
- O que deseja, senhor?
A voz é agradável, as palavras bem articuladas, mas há algo mais que não consigo distinguir. Um convite?
Fico parado, observando-a. Aqueles olhos têm um brilho que me fascina; a pele é negra. Negra! Uma mulher negra! Nunca tinha me interessado por uma negra. Não por racismo, mas raramente convivi com elas. Sinto-me inquieto diante desta mulher. Tudo nela é exuberante, como essas modelos em dia de passarela, que rapidamente se transmudam de mulher fatal para anjo. Fico com as mãos suadas, o coração disparando, uma excitação crescente vindo de minhas entranhas, que há muito deixei de perceber. Não sei o que dizer nem o que fazer.
Novamente aquela voz e aqueles olhos:
- O que deseja, senhor?
O senhor me incomoda. Afinal quem está ali, perante aquela mulher exuberante, é pouco mais do que um adolescente, apesar de meus quase 60 anos.
- Ela ainda é jovem, penso, deve ter uns 35 anos (Ah! A década dos 30, quando as mulheres estão em toda sua plenitude!). Fico perdido num turbilhão de pensamentos e “saio do mundo”.
Outra vez a voz:
- O que deseja, senhor?
(Desejo a ti, teu sorriso, os teus olhos, tua boca, tua aparente alegria e descontração, o teu corpo. Desejo sair deste mundo sufocante que tenho vivido com uma mulher impenetrável para entrar em uma outra vida, cheia de contentamento e de riso fácil).
Preciso dizer algo. Tolamente pergunto onde fica o escritório do Dr. Fulano de tal. Ela olha mais uma vez para mim com aqueles olhos marotos, sorri, dá a informação e volta a sentar por detrás do balcão de granito rosado.
O peso dos quase 60 anos volta a tomar conta de meu corpo, e lentamente me dirijo para o elevador.

Nei Guimarães Machado
Oficina de Criação Literária
Março de 2006.